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Sobre os escritores de tecla e os de caneta

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Se algum dia me afirmar como manifesto escritor de livros, acredito não ter outra alternativa do que assumir-me como escritor de tecla em detrimento do clássico escritor de caneta. A folha de papel maça-me e atrasa-me, a ponto de a equacionar sobretudo como adjuvante do processo redactivo. No meu entender, a tecla permite uma poupança de tempo e uma melhor gestão estética da escrita pelas ferramentas que lhe subjazem em termos de tratamento e revisão do texto.

Este traço foi já matéria de algum constrangimento, até que me interroguei sobre os clássicos e como seria se estes fossem escritos hoje. Será que seguiriam a tecnologia actual? Eu creio que sim, a menos que por clássico se entenda conservadorismo. Onde nos clássicos se lê sobre cavaleiros, talvez hoje se falasse em automóveis ou aviões, onde se fala dos monges copistas, talvez hoje se falasse de call-centers. Hoje o clássico seria naturalmente escrito com recurso à computação, e é esta convicção que me serena o constrangimento sobre a minha preferência pelas teclas. Respeito e admiro os que, à luz actual, - que será eléctrica – se conseguem disciplinar e motivar para a escrita de caneta, mas nem por isso os vejo superiores aos que como eu redigem aproveitando o que a tecnologia possibilita. Sei que Saramago ainda foi a tempo de ter um blogue, apesar de ser um escritor de papel, mas o que pensar dos clássicos caso vivessem hoje? Será que Fernando Pessoa teria um blogue para cada heterónimo? Será que Eça divulgaria seus escritos com recurso ao Twitter?

A literatura está formatada para um estereótipo tão forte a respeito do que é ser-se escritor, que é tortuoso equiparar o escritor moderno (e que usa novas tecnologias) aos escritores de referência do passado. Depois, importa pensar quais os desafios temáticos que se colocam ao escritor moderno. A democracia criativa prevê uma liberdade de escolha sobre o objecto da escrita, mas não proíbe que se possa opinar sobre os rumos que parecem mais relevantes do ponto de vista do acréscimo de valor. Perante a progressiva complexidade das dinâmicas de vida do ser humano, nos domínios da família, da vivência em sociedade, do tempo, da tecnologia, do dinheiro, mas também das forças, por vezes obscuras ,que presidem à governação das transformações executadas na sociedade, estou em crer que a obra literária ideal para o leitor de hoje, aquela que este precisa, mas não necessariamente a que este prefere, são enredos cuja epiderme reserva porventura uma ficção cativante, mas cuja endoderme constitua uma grande metáfora convidativa a uma pertinente reflexão sobre determinado aspecto da vida que levamos e que seja merecedor de um alerta. Claro está que tudo se resume a uma opinião, a opinião de um potencial escritor, de um escritor de tecla.

2 comentários:

  1. Meu caro Marcelo Melo
    para falar sobre esta questão, sou obrigado a tocar numa outra questão, que preferiria não tocar, mas, se é para escrever algo que faça algum sentido, e você merece que assim seja, então terei de falar nisso.
    Como já percebeu, eu tenho apresentado textos, que fazem parte de livros que já tenho escritos. Isto só para dizer que, para os escrever, tenham eles alguma qualidade ou não,tive, necessariamente, de passar por um processo criativo. E é aqui que eu quero chegar.
    Não posso estar mais em desacordo consigo, meu caro amigo.
    Escrever estes textos para comentar na net, ou escrever uma carta na net, ou outra coisa que não exiga de mim mais do que um ténue dispêndio de energia mental, é-me perfeitamente possível fazê-lo. Agora, se me proponho escrever um texto criativo, que obedece a um planeamento prévio, nem pensar em escrever em computador. Necessito do conforto do papel, do aconchego da lapiseira na mão, de riscar, de saber o que risquei, de atirar fora o que, afinal, ficou ternamente guardado.
    No computador a escrita é impessoal. No papel, estamos nós, a nossa letra, o nosso cunho.
    Eu tenho uma enorme paixão por lapiseiras. Apenas com o computador, adeus paixão.
    Haverá coisa mais bonita do que sabermos que, em determinado local, estão guardados os nossos manuscritos?
    Manuscrito- uma espécie em extinção,que eu providenciarei no sentido de a preservar enquanto puder.
    Um grande abraço.

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  2. Caro Poeta do Penedo,
    Ao escrever este texto, estava consciente das potenciais objecções ao mesmo fruto de, como antecipei no texto, ser “tortuoso equiparar o escritor moderno (e que usa novas tecnologias) aos escritores de referência do passado”.
    Não pretendo discutir as suas preferências, antes agradecer-lhe o interesse por partilhá-las comigo, que tão aprazivelmente delas tomei conhecimento.
    Permita-me, ao invés, complementar o texto com o seguinte: o homem escreve no papel porque inventou o papel. Note que em tempos primitivos escreveu em rochedos de grutas. Como tal, não é de todo expectável que a escrita se cinja intemporalmente ao papel, como se esse fosse o traço disciplinador da escrita e aquele que deve predominar. O próprio Poeta gosta de lapiseiras e note que os clássicos não foram escritos com elas certamente, ou seja, também no seu caso houve permeabilidade à evolução.
    Com este texto, venho apenas revelar que me sinto mais fluido e confortável na escrita digital, a escrita de teclas que o Poeta qualificou de “impessoal”. Compreendo mas não perfilho.
    Alerto tão-somente para o facto de não ser saudável, mesmo do ponto de vista criativo, como referiu, ficarmos no conceito de escritor e no acto de escrever baseados nos períodos medievais ou clássicos, sob pena de tudo isto ser um dogma cultural e estético.
    Grato,
    Marcelo Melo

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