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Sobre o papel do sono na coesão familiar

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Tropecei há um punhado de dias na para mim surpreendente descoberta de que sono e o acto de dormir podem muito bem ser o último reduto e garantia da não desestruturação total das famílias em detrimento dos horários altamente exigentes e desgastantes, ou mesmo da falta deles e do que isso representa em termos de incerteza e inconstâncias na chegada e saída de casa diariamente.

Se é com relativa facilidade e crescente normalidade que certas funções corporais são garantidas fora de portas, como no trabalho, na rua, no centro comercial, ou similares, o sono e o dormir permanecem como que intocáveis neste domínio, mantendo um carácter privado que os remete para a esfera do lar quase em exclusivo, salvo nos casos de um cochilo no carro ou um acidental adormecer numa aula, reunião, evento.

Ora quem tropeça nesta constatação não perderá tempo a tropeçar na pergunta: porque motivo são o sono e o dormir resistentes ao poder avassalador da vida moderna que já tantas vezes se mostrou audaz na apropriação e abandalhamento da vida privada?

Para começar e porque pode influenciar, senão condicionar mesmo, o sono é por nós malvisto e maltratado. Se em comida estamos cada vez mais obesos, em sono vivemos no limiar da anorexia. Recordo uma leitura que fiz na qual se referia que o ser humano tinha dois picos de sono diários e que um deles ocorria à noite e o outro algures no período vespertino. As sociedades desenvolvidas não permitem o descanso à tarde, mesmo quando a alimentação repartida durante o dia e as funções fisiológicas idem. Caso houvesse em sociedade a devida atenção à inevitabilidade deste segundo pico de sono que calha em pleno horário laboral, talvez o sono fosse também ele civilizado e transportado para os locais de trabalho e locais públicos com idêntica naturalidade à das outras necessidades humanas, reais ou inventadas (como o fumar).

Mantendo o papel obscuro e a sua pertinência visceral sonegada, as pessoas enganam o sono diariamente com tomadas de café mecanizadas e viciantes a fim de esconder a tentação de fazer algo que a sociedade só permite fazer em casa, dormir. Os espanhóis têm a siesta, mas nunca contagiaram o mundo com ela.

Ora as famílias só têm a ganhar com isto, pois julgo não estar errado ao dizer que o sono é praticamente a última função à qual não se consegue verdadeiramente responder fora de casa. Isto leva a que o núcleo familiar tenha de se reunir diariamente debaixo de um tecto, mesmo que por vezes o tempo de contacto seja escasso. Antes escasso que nenhum, do mesmo modo que antes dormir em casa do que ter de enfrentar o enorme peso social e emocional que jaz na asserção “ele/ela não dormiu em casa esta noite”. A surgir, esta declaração porá a nu o total regime de exclusividade com que o sono e o dormir se pautam no tabuleira em que se joga a vida numa sociedade moderna e desenvolvida.

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