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Sobre Fernando Pessoa e o seu Livro do Desassossego

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Stockpile - Mamma Andersson (2004)

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Concretizei este verão uma desejada aproximação à prosa de Fernando Pessoa. O Livro do Desassossego é uma obra de recortes independentes que o autor foi escrevendo numa etapa da sua vida. Como tal, requer uma leitura pouco exigente do ponto de vista sequencial, dado não existir qualquer fio condutor.

À primeira vista, Pessoa aparenta ser alguém psicologicamente instável ou com propensão para alterações, químicas e induzidas, do estado espírito. Num segundo momento interpretativo, a escrita de Pessoa reflecte a solidão e o tipo de disponibilidade que se tem para a escrita nessa condição. Este ora sentia e expunha a sua diferença face à comunidade que o cercava ora tendia a defender pontos de vista que salvaguardavam a sua auto-estima, decorrentes da falta de família, das noitadas, do seu estilo de vida, etc, ora depositava no papel as suas ideias bizarras como forma de se confortar perante uma actividade mental e criativa tão patente e fervilhante. Este homem ocultou o seu génio num posto de trabalho de menor notoriedade, porventura na linha do que se conhece de Einstein, ficando assim liberto para pensar nos seus assuntos e desenvolver com mestria a sua escrita devido às tarefas rotineiras e pouco exigentes do ponto de vista intelectual. Mesmo que inexistam dopantes neste espírito especial de Pessoa, algo que me parece pouco provável, este não esconde que aquando de certas passagens do Livros do Desassossego operou em magnitudes de sonolência potenciadoras de uma abordagem muito própria dos assuntos. 

Pessoa é um prosista de frases e parágrafos emblemáticos, e alguém que poderia ter ficado célebre exclusivamente na qualidade de filósofo. A metafísica de Pessoa é simplesmente deliciosa, sendo mesmo suficiente para saldar certos instantes monótonos e previsíveis, ou porque este abusa da descrição do céu e de Lisboa, ou porque imprime excessivo desnorte, obsessão e entropia na mensagem que quer transmitir. De facto, Pessoa oscila entre vocábulos incomuns e repetições entediantes de palavras como pensar, sentir viver. De referir também que, no seio deste livro, consta um trecho que apresenta a opinião do próprio sobre a poesia e a prosa. No seu entender, a prosa supera a poesia enquanto arte, posição que me surpreendeu visto que não a esperava ler de alguém que é considerado, ainda que involuntariamente, poeta maior da língua portuguesa. Não concluo sem confidenciar que a prosa Pessoa não me satisfaz como a de Saramago, por exemplo, na exacta medida em que a sua entropia interior parece ser produto de uma alienação mental provocada que me perturba na análise da sobriedade e relevância do que leio, mas também pelo carácter pessoal do que é escrito, com um posicionamento do texto praticamente constante na óptica da 1ª pessoa e da confidência da vida pessoal, um pouco na linha do que conheço de Lobo Antunes em Os Cus de Judas ou Memórias de Elefante.

Publicação original:27-08-2010

Revisão: 24-11-2016

2 comentários:

  1. Caro Marcelo Melo
    nunca li qualquer tipo de prosa de Fernando Pessoa, muito embora o título deste livro não me seja desconhecido, que, por via da atenta leitura que fiz à sua análise, irei comprar. Na verdade, é deveras surpreendente Pessoa considerar que a prosa, enquanto arte, é muito mais completa do que a poesia. Considerar-se-ia ele um poeta de pouca veia?
    Á parte o livro, a sua análise foi excelente, merecedora de ocupar lugar de relevo no global das mensagens, que por aqui tenho lido, referentes ao nosso genial poeta Fernando Pessoa.
    Com amizade.

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  2. Caro Poeta do Penedo,

    Não há nada como conhecer com os próprios olhos algo sobre o qual se deseja formular uma opinião.

    Encontrei em Fernando Pessoa matéria para o dotar de destaque no panorama literário português, mas confesso que ainda não me decidi quanto ao destaque que me parece merecer.

    Sinceramente, aquilo a que aludi neste texto lançou-me num debate interno sobre o valor de Fernando Pessoa, sem fim à vista...

    Agradeço-lhe o apreço por este texto em particular. Estar de férias beneficia a escrita, pelo tempo dedicável à mesma, mas também pela serenidade para a desenvolver.

    Um abraço,

    Marcelo Melo

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