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Sobre o atentado a Charlie Hebdo, o problema da intensidade, e a lógica da condução defensiva **

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Aquilo a que chamamos pressão explica-se como sendo uma força que é aplicada sobre uma área (superfície) delimitada. Para uma área fixa, quanto maior a força, maior a pressão. Por outro lado, para uma força fixa, quanto menor a área maior será a respectiva pressão. 

Falemos então da liberdade de expressão. Num espaço público de dimensão grande o suficiente para parecer infinito, qualquer ímpeto de expressão (a força) criará uma pressão pequena por mais forte que seja a pertinência ou intensidade da mensagem. Em abstracto o mundo parece grande demais e cada pessoa/voz é apenas um grão de areia num oceano de liberdade. É neste âmbito que parece ser impossível beliscar o direito à liberdade de expressão individual.

Acontece, porém, que existem duas formas de tornar a voz de um cidadão artificialmente mais notória: ou engrandecer a força da sua mensagem, ou conter/aguentar a superfície sobre o qual ela incide, de modo a que pressão seja maior do que naturalmente seria. Para os mais desatentos esta é a lógica que favorece o uso do macaco hidraúlico para elevar veículos, e daí um homem conseguir levantar um carro por via daquele instrumento, que de outro modo não conseguiria, apesar de ele ser a mesma pessoa em ambos os casos, e de a sua força permanecer inalterada. Aparenta ter mais força, individual, mas o verdadeiro efeito diferenciador é de pressão.

Assim, o problema de se defender sem pestanejar a liberdade total de expressão é ignorar que por vezes a pressão por ela criada pode ser instrumentalizada para produzir uma intensidade perigosa, desencadeadora de bombas atómicas emocionais.

O recente atentado ao Charlie Hebdo representa a demonstração disso mesmo. Um cartoon, que em abstracto mal algum pode provocar (afinal de contas é esse grão de areia de força expressiva que se dilui no infinito oceano de liberdade), ficou empolado e tornou-se insuportável para alguém que sentiu a respectiva pressão incidir especialmente sobre si. Daí a poder acontecer uma tragédia é uma sorte de probabilidade por desvendar.

A pergunta de 1 milhão de dólares, é então esta: por que motivo o Charlie Hebdo angariou esse ódio, quando tantos colunistas e cartoonistas pelo mundo passaram incólumes embora tenham igualmente atacado o que de menos bom o Islão radical preconiza e representa? Que categoria especial da liberdade de expressão tem o Charlie Hebdo? Uma em tudo comparável aos que não foram atacados mas que denunciam também, em França, os mesmos temas? Não querer ver essa diferença é tapar o sol, não com a peneira, mas com a venda da liberdade de expressão em abstracto.

Nós, ocidentais, temos um problema com a intensidade, e confundimos liberdade de expressão com carta branca. Misturamos a liberdade de expressão com a utopia da intensidade ao invés de apostar no endurance das repetidas vezes que o cântaro vai à fonte. Sequiosos dessas intensidade, granjeamos força e pressão para bem dos nossos egos, como se tudo fosse um braço de ferro dependente da força, e não de jeito. O que isso do jeito, pergunta o intenso?

Para concluir, recordo a este respeito as instruções que recebi aquando da preparação para obter a carta de condução: todo o condutor deve saber o código da estrada, mas, pelo sim pelo não, devemos optar pela condução defensiva, presumindo que os demais condutores poderão não atender a esse código, seja por ignorância ou por negligência. Com isto poupam-se vidas, as nossas e as deles.

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