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Sobre uma reflexão sentida de Portugal, Portugal na Europa e Portugal no Mundo

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The Chaplain's Daughter, por Frederick Walker (1868)

(Tenho por hábito escrever coisas pequenas para não maçar. Este texto escapará propositadamente a essa meta. Deve-se esta excepção ao cariz da minha reflexão, que não consegue cingir-se a poucas linhas.)


Se não me falha a memória, na contracapa do livro 'Ensaio sobre a cegueira', pode ler-se a seguinte mensagem: 'Se puderes ver, olha. Se puderes olhar, repara'. Nela encontro um bom ponto de partida para falar destes tempos que temos vivido.

Para abordar este assunto, proponho três  abordagens em ordens de grandeza distintas: o país Portugal, o continente Europa e o Mundo. Permitam-me que case estas  três ordens de grandeza com os três verbos implicados na mensagem do livro de Saramago: Ver, Olhar, Reparar.


1. Portugal - Ver

Ver é dos três verbos em causa o mais acessível e natural em qualquer pessoa. Vemos facilmente o que se passa em Portugal. Vemos o produto da cumulativa gestão levada a cabo no país. Vemos a manifesta escassez de fundos e recursos. Vemos o desemprego. Vemos a tributação galopante, para colmatar a não menos galopante necessidade progressiva de se gerir um país que não consegue viver sem ser com dinheiro emprestado.

Temos visto, portanto, que este país só não implodiu porque concretizou um pedido de resgate que, não sendo gratuito, tem a importante contrapartida de garantir a soberania, garantindo a sua existência como um Estado independente, mas com compromissos financeiros cada vez mais delicados.

Numa leitura à escala do país, é esse resgate que está a obrigar a que todos empobreçamos. Feitos miúdos que têm de fazer uma vaquinha para comprar algo no quiosque da esquina, amealhamos entre todos o dinheiro que faz com que as pensões continuem a cair todos os meses, que pagam uma escola, saúde e justiça tendencialmente gratuitas.

Vemos como isto tem sido dramático. Vemos como é em certa medida injusto. Vemos como é incompreensível.

2. Europa - Olhar

Ocupando nesta hierarquia um patamar intermédio, olhar é o mínimo que se exige a quem, tendo possibilidade de Ver, deseja apreender e aprender algo sobre o mundo que o rodeia.

Olhemos para esta Europa: quer ter o poderio geopolítico, económico, militar, científico (e outros) de uma união de Estados de craveira continental, ombreando assim com os transatlânticos Estados Unidos da América, mas depois é curta na ginástica política e económica que está disposta a pôr em prática. Olhando bem, todos sabemos dar valor à existência de uma moeda comum, à livre circulação de bens e pessoas, à inexistência de barreiras alfandegárias, à paz que o projeto europeu conferiu a nações historicamente rivais e inimigas. Ainda assim, olham estes países feitos desconfiados uns dos outros, porque na diferença cultural, pensam que uns trabalham e os outros gastam, que uns são filhos, outros enteados. 

A Europa enquanto barco afunda se um dos marinheiros furar o convés e pela sua camarata começar a entrar demasiada água. Por isso, todos devem acorrer às camaratas que metem água, sejam Grécia e Portugal, porque já se sente e cheira a humidade nas camaratas vizinhas.

A Europa safava-nos facilmente desta aperto, mas não está organizada para isso. Se este país arder, existem aviões europeus para nos socorrer. Se faltar o dinheiro, não.

3. Mundo - Reparar

Reparar é algo complexo, pois requer que se pare, algo já de si difícil, e depois se olhe, que ainda mais o é.

Enquanto vemos a situação portuguesa e com ela nos entretemos por ser a mais direta obrigação que temos, custa-nos olhar para a Europa (trata-se de um bloco continental, mentalmente é algo muito distante e opaco) e tentar  compreender o que por lá se passa. Ainda mais custoso será reparar no que se tem passado no mundo nas nossas barbas, enquanto vemos o Ronaldo marcar um golo ou os líderes políticos sucederem-se.

Mil milhões é o número de pessoas que entraram, 'de repende' e à socapa, na economia mundial. Países fechados, que não se davam connosco, de repente abrem-se e dizem: 'Podemos jogar'? 'Claro que podem jogar', o Mundo é de todos e para todos e o capitalismo, sendo desporto rei, abarca todos e para todos tem um plano.

Nestes mil milhões contam-se chineses e indianos, sobretudo, mas também gente do Leste Europeu, do Brasil e de África. Cristalizemos o fenómeno: repare-se que esta era gente que vivia em economias rurais, aquilo que do estilo de vida europeu entendemos como o subdesenvolvimento. Que fantástico que é, do ponto de visto do progresso e da fome, das doenças, etc, que mil milhões de pessoas possam estar agora a passar à classe média, a ter acesso a coisas que nós já estamos habituadíssimos como televisões, telefones, casas próprias com saneamento, eletricidade e aquecimento/arrefecimento, etc. Aumentam a expectativa de vida, têm mais estabilidade, desenvolvem-se e são mais felizes.

Esta gente está em condições de ser os primeiros em muitas gerações a poder tirar férias e a viajar pelo simples gozo que isso dá. Reparemos no número de turistas asiáticos a visitar Itália, França, Inglaterra, e outros sítios: de onde apareceu esta gente? Já os viram? Olharam para eles? Repararam na vontade que trazem de estar ali, no solo Europeu, palco do desenvolvimento? Enquanto fenómeno é quase uma chegada à Lua.

Naturalmente, a riqueza está-se a distribuir por mais gente, e a distribuir-se mais depressa por aqueles que estão mais abaixo do que nós em termos de desenvolvimento. Por isso a Europa definha, por isso Portugal perde postos de trabalho, economia, geração de riqueza.

Conclusão: Ver - Olhar - Reparar,  à luz do eixo Portugal - Europa - Mundo

Compreendo a cabeça perdida de muita gente que só agora acordou por força da pobreza que lhe bate à porta, ou por força do desemprego que faz murchar as suas expectativas, ou por força do imóvel que já precisava de ser pintado mas nem pago vai ser ao banco.

Tenho 25 anos, estou a lançar-me na vida e Portugal está no lado da barricada que vai ter de sofrer para que mil milhões de pessoas e outras, assim se espera, possam ter dignidade e ascender socialmente como  os nossos antepassados ascenderam. Se tínhamos até há bem pouco tempo dinheiro para telemóveis, para ter internet, para comer fora, para ir ao cinema, para viajar, para estourar em produtos de marca sem pestanejar, para automóveis e apartamentos chave-na-mão, pois bem, teremos de reajustar certos hábitos e a nossa existência a estes mil milhões que acabaram de entrar no autocarro da civilização e pretendem ter um lugar sentado, pois também pagam bilhete e, saibamos dizê-lo, também são filhos de Deus. 

(Se acharem merecido, convido-vos a partilharem esta reflexão com aqueles que possa beneficiar com a sua leitura)

Leituras recomendadas: O mundo é Plano, A Era da Turbulência

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