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Sobre a insuficiência dos cuidados de saúde públicos enquanto telhado de vidro a favor do setor privado da saúde, o turismo médico, e a avaliação final do bem comum

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Double syringe ichelangelo - Lynn Hershman Leeson (2015)

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Serviços públicos com falta de recursos e atrasos severos na prestação efetiva de cuidados de saúde são o maior telhado de vidro a favor do fortalecimento do setor privado da saúde e da demonstração de que o Estado não é de confiar em matéria tão delicada como esta. Se a desconfiança estrutural em deixar o setor privado tomar mais espaço sobre o serviço nacional de saúde assenta num pressuposto de que a subjugação da saúde humana à lógica do lucro (primazia das contas equilibradas) deturpará a imunidade moral que se crê fundamental para respeitar o ser humano que cada paciente é, quando a lógica da contenção do custo é instalada pelo próprio Estado na forma de suborçamentação e cativações (uma outra forma de primazia das contas equilibradas) e com isso o serviço global prestado é manifestamente insuficiente, a imunidade moral que se acreditava que só o sistema puramente público confere é também ela definitivamente posta em causa.

Os seguros de saúde vêm aumentando quiçá porque as pessoas querem sentir-se mais salvaguardadas em matéria de cuidados saúde, ou seja, não querem ver os seus tratamentos no serviço público ficarem reféns de atrasos ou incertezas devido a lógicas de contenção de custo ou de sindicalismos politizados. São seguros que visam cobrir a insegurança sentida relativamente à própria saúde pública. (Também aumentam porque as entidades patronais querem dotar os seus empregados de maiores garantias e autonomia de que se tratam e curam a tempo de tornar ao posto de trabalho. Isso previne falhas na produtividade e garante simultaneamente pessoas mais confiantes quanto ao seu presente e futuro). 

Por fim, há também a questão do turismo médico, tema aparentemente secundário para os interesses do cidadão comum, mas que não é. Este tipo de turismo poderá vir a aumentar o volume de utentes  de saúde em Portugal através de pacientes estrangeiros que queiram tratar-se e por cá, justificando mais investimento em infraestruturas e opções médicas, bem como tabelas de preços com outras métricas de amortização desses investimentos. Portugal tem um mercado interno pequeno, e a economia nacional ressente-se disso, pelo que a importação de utentes poderá ser de grande ajuda para compensar fraquezas estruturais. O possível aumento de volume proporcionado por pacientes estrangeiros trará também mais vagas de trabalho no setor da saúde, beneficiando os portuguesese a economia nacional. Não é de todo expectável que seja o próprio Estado a decidir explorar o turismo médico e a convidar para isso cidadãos estrangeiros a virem a Portugal tratar-se, por isso esta possível alavanca para o setor da saúde irá sempre depender da iniciativa privada e das ditas lógicas de lucro no setor da saúde.

Cabe ao Estado perceber como deve conciliar o seu papel de regulador do bem comum com o seu papel de garante do bem comum. No fim de contas, será sempre o utente português aquele que tem de ganhar com o arranjo escolhido para o setor da saúde público-privada, sob condição desse ganho ser real, não apenas teórico ou ideológico.

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