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Sobre o espetáculo humorístico 'Desconfia' (Joana Marques), e a necessária denúncia ao pouco escrutinado universo da autoajuda e do coaching

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Self-Portrait with Falling Sky - Julie Heffernan (2011)


Tenho grande propensão para ouvir analistas desde que o que tragam para comunicar seja novo e credível. Acho meritório que se consigam detetar padrões sobre o que à vista desatenta pareçam episódios avulsos de um mundo caótico, e que com isso se edifiquem ou esculpam teses organizadas que sirvam de hipótese para descodificar a realidade e apurar a verdade.

Serve isto para prefaciar a minha experiência no espetáculo humorístico Desconfia, assinado pela humorista Joana Marques, que expôs e ridicularizou a enxurrada de (auto)proclamados especialistas em autoajuda através da denúncia em jeito de paródia da polpa programática que preconizam. Do coaching motivacional à positividade tóxica, passando pelos aforismos estilo previsão meteorológica, tudo convergiu para mostrar como pessoas que se convencem demasiado de si próprias levam incautos  concidadãos a pensarem que estão perante sábios do desenvolvimento pessoal, profissional, alto rendimento.

Fui muito bem e divertidamente surpreendido pelo alinhamento metódico e organizado, com forte condão satírico, e com aquilo que todos gostamos em contexto de aprendizagem: casos concretos. E todos extraídos da mesma praça pública onde são depositados gratuitamente por quem dela quer colher louros e cifrões. Julgo que um dos motivos para ter gostado do que encontrei deve-se a que as opções de comédia são não raro curtas no espectro de temas que se propõem parodiar. 

 No rescaldo das gargalhadas, consenti que algumas ideias sérias sedimentassem sobre este mesmo assunto, e passo a ocupar-me delas:


1. A procura atual por apadrinhamento motivacional tem respaldo no esvaziamento da crença religiosa onde há um Deus que serve de escoadouro das preces e fornece doutrina orientadora. Várias das personalidades do coaching e/ou guardiães da inspiração preenchem vazios (de esperança ou de relativização) desconfortáveis no percurso das pessoas, e a ligação ao grupo tem tanto ou mais poder do que o rigor e mérito do conteúdo veiculado para preencher os vazios. Tal qual numa religião.

2. O mundo digital onde muito disto se passa sobrepôs-se a milénios de filósofos e seu preceitos, a conteúdos repletos de matéria moral aplicável às vidas das pessoas, ou mesmo às máximas potentes que nos deixaram. Substituiu-os por pessoas sagazes que otimizam a mensagem para conseguir deter canais comunicacionais com muito público (alcance), sem a necessária revisão de pares, e onde para que consigam aportar alguma coisa aparentemente nova, proprietária, de cunho pessoal, inventam pegado e usam de criatividade para impressionar a audiência mas não necessariamente para lhe fornecer a verdade.

3. Existe uma propensão para criar e promover fórmulas absolutistas de sucesso no meio da autoajuda, criando uma ideia de que o mundo tal qual é para cada pessoa deve encaixar nessas fórmulas, ao invés de ser cada pessoa a identificar para o mundo que lhe coube viver que tipo de diretrizes se revelam mais adequadas como farol para a sua situação em concreto.

4. O produto da autoajuda não tem de implicar sermos os melhores do mundo ou sermos imbatíveis como pessoas ou profissionais. Há uma tendência ao radicalismo nesta horda de locutores que ganha a vida a motivar e guiar os outros. O saudável é as pessoas assumirem as suas derrotas ou erros, até porque a sua derrota é muitas vezes a vitória do colega do lado. Uma coisa é ter espírito vencedor em permanência, outra é vencer em permanência. Esta última é impossível.

5. Não é credível que a autoajuda assente somente em grandes e inabaláveis certezas. A dúvida faz parte do processo de autoconhecimento e do processo de evolução. Parece inevitável concluir que o super homem e super mulher para quem muito se aponta no mundo da autoajuda é aquele/a que marcha sem se olhar ao espelho e questionar, a espaços, se está no trilho certo ou não, como que pode melhorar, que porção de sorte/azar ou de mérito/demérito tem a conjuntura que está a viver. É um rei que vai nu e disso se orgulha ao espelho, pelo menos assim diz aos outros. 


Por me fazer rir e por tudo isto que me fez pensar saúdo o espetáculo Desconfia. As portas de entrada na reflexão e na extração de aprendizagem moram também na comédia, e é especial quando assim o é, porque o humor que abunda é o da superficialidade.

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