O filme “O Fantasma da Liberdade”, do espanhol Luis Buñuel, é contemporâneo da revolução dos cravos portuguesa, e completa no ano em que este texto é escrito uns redondos cinquenta anos de existência. Foi para mim um achado, visto que não só o desconhecia como desconhecia o seu diretor, conviva de Salvador Dalí.
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Sobre o filme "O Fantasma da Liberdade”, e uma fantástica e cómica proposta de surrealismo na sétima arte, sem recurso a efeitos especiais
Sobre a impermanência como segredo do funcionamento da vida, e os cambiantes humanos e externos que parecem explicar o seu modus operandi
Luda in Kazan - Sinead Breslin (2023)
Do dizer popular "não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe" pode ser extraído que há uma perceção recorrente na sociedade centrada na ideia de que a impermanência de condição é mais uma regra do que uma exceção.
Na esfera das atividades humanas há pelo menos três fatores que isoladamente ou em série se perfilam para provocar impermanência aos processos. São eles: (i) a quebra da continuidade forçada pela duração de um ciclo de luz (ou seja, a alternância do dia e noite); (ii) a flutuação hormonal de cada ser humano, em especial das mulheres; (iii) e por fim os eventos climáticos, mormente estações do ano, mas também ocasionais vagas de frio, tempestades, chuvas, calor, etc.
Os três cambiantes acima identificados, à falta de outros ainda mais ajustados, perfilam-se sozinhos ou em conjunto para promover a impermanência das coisas, desde logo porque forçam à existência de ciclos, de reversibilidade, de cessação da repetição. Por outro lado, estes mesmos motores dão azo à casuística de possibilidades em que a realidade se transforma e nos surge já vestida de efemérides, isto como mecanismo na antecâmara da concretização da roupagem de vida na qual cada um está, caso a caso, inserido.
Creio ser também isto o que a astrologia tende a querer inferir a partir de modelos simplistas para algo tão massivo e não linear. Acertará a espaços, mas a sensação que dela fica é que, qual previsão meteorológica do tempo para os próximos dias num dado território, os modelos astrológicos são demasiado imperfeitos para a universalidade e alcance espaciotemporal preditivo que almejam ter.
Concluo confessando que a tomada de consciência de que a impermanência faz parte dos segredos da vida é em si mesmo um bálsamo de tranquilização. Mesmo não tendo mapas que nos guiem certeiramente para fora dos casos mais bicudos ou insólitos em que a impermanência nos coloca, pelo menos temos como subsistir psicologicamente à tona desses problemas, com a noção de que o jogo da vida parece naturalmente ser assim mesmo, e de que com doses reforçadas de resiliência e estoicismo tudo acabará por impermanecer e... passar.
Sobre o reassumir da importância de refletir demoradamente o mundo pela escrita, num tempo artificialmente inteligente
Apesar do tempo de humanidade que nos precedeu em muito superar a escala da nossa vida, décadas de vivência são temporalidade suficiente para testemunhar alterações tanto na sociedade como em nós mesmos, qual produto evolutivo da experiência individual e coletiva, da maturação de potencial cedo suspeitado ou fortuitamente aparecido já com a nossa carruagem de vida em andamento.
O registo do pensamento esbarra cada vez mais na trivialidade do ato, já não só pela profusão de postos emissores que a rede mundial digital cedo permitiu constituir, mas ainda mais agora pela substituição da palavra escrita e do ato reflexivo que a precede, pela concorrência da imagem em movimento e comunicação em discurso direto, espontânea e a quente quanto ao conteúdo. Não obstante, o registo por escrito do pensamento faz-se tão ou mais necessário do que décadas transatas, pois o seu mérito é constituir oficina de criação e esclarecimento de ondas de dúvida ou frémito interior, e com isso apurar naquele que escreve (e expetalvemente naquele que o lê) uma convocatória para uma vida mais esclarecida e pejada de sentido.
Deparamo-nos nesta fase com a emergente vertigem da inteligência artificial, que nos convida a desistir de mais e mais consumições mentais em detrimento de facilidades responsivas que esse instrumento se propõe realizar com ou sem procuração assinada, com ou sem respeito pelos direitos de autor. Por muito oculta e não auditada que permitámos que seja, a máquina ecoará só o que o reservatório de combustível contém e permite, e este acervo só contém o que lá foi e é despositado de novo. Sem conteúdo original, o que sai dessa fonte são receitas feitas sempre ingredientes cada vez mais gastos porque parados no tempo. Não se desista, pois, de continuar a produzir ingredientes intelectuais originais, sejam reflexões, sejam trabalhos técnicos, sejam criações artísticas, porque continua a não haver substituto para o trabalho novo, disciplinado, sério e honesto.
São estes os votos que reafirmo para mim e para o leitor, ainda que só eu saiba a que custo regresso a eles quando as circunstâncias de vida apelam e incitam à desistência de me recompremeter com semelhante missão. Há qualquer coisa de superior nesta empreitada, e é essa a estrela do firmamento que me continua a guiar.
Sobre um sucedâneo para inteligência chamado ler situações com exatidão e tomar decisões acertadas a respeito das situações analisadas
Please be talented - Amy Lin (2017)
Os anos têm-me apurado a sensação de que o mais importante na vida é, de forma conjugada, a arte de saber ler as situações com exatidão e a arte de saber tomar decisões acertadas a respeito das situações analisadas.
Quando ao ler J.P. Snow me deparei com a ideia por ele veiculada de que os homens de ciência eram pessoas que sabiam tomar conta de si, penso que ele está a remeter para essa capacidade de ser o adulto na sala em cada a sala possível que a vida coloque um ser humano, ou seja, revelar-se alguém preparado para o que der e vier. Não porque tenha super poderes que extravasam as limitações da condição humana, mas porque compreenderá cada desafio com um discernimento apurado, e sobre esse entendimento decidirá no sentido correto com maior probabilidade que outros menos preparados nestas lides. Daqui decorre uma chance maior de sucesso pessoal e uma maior chance para salvaguardar a felicidade global.
Colocado de outra forma, devemos creditar com a nossa estima aqueles que mostram, por múltiplas ocasiões, emitir opiniões e pareceres que um longo tempo mostrem acertados, pois são esses os melhores a ler a realidade, e possivelmente os melhores a tomar decisões. É importante não ficar por um acerto, mas antes por uma sucessão delas pois há sempre sucessos casuísticos que nada devem ao talento humano embora o pareçam quando circunscritos a um período específico.
Não consigo precisar se as duas competências convivem sempre juntas, mas quer-me parecer que quem não lê bem as situações só por sorte ( e esta é improvável perdurar) conseguiria resolver consistentemente bem sucessivas situações. Por isso, àquele que lê bem a realidade, até pode faltar criatividade ou coragem para assumir a melhor solução para um problema, mas vai pelo menos escolher soluções para o problema certo, o que sem dúvida encurta o leque de lapsos possíveis.
E toda esta conversa é uma avenida que se substitui à discussão sobre inteligência das pessoas. O talento de entender cada problema enfrentado e de enfrentar com o melhor naipe de soluções é uma demonstração de capacidade que, chamem inteligência ou outro nome, dota aquele que a bem domina de maior autonomia e poder para se desenvencilhar mental, emocional e/ou materialmente do problema, aumentando-lhe a chance de ser feliz por não se deixar atolar em toda e qualquer infelicidade que lhe caiba em azar ter de superar.
Sobre o livro 'Mau Tempo no Canal' (Vitorino Nemésio) e uma história de amor que é na verdade um quadro sociocultural multifacetado da sociedade açoriana no princípio do século XX
Retired Whaling Captain's Study, Nantucket, circa 1860 - Eugene Kupjack (1983)
O livro Mau Tempo no Canal, do açoriano Vitorino Nemésio, narra uma história insular centrada em Angra do Heroísmo (ilha Terceira), que se inicia tendo como pano de fundo um romance não assumido entre Margarida Dulmo, filha de uma família com origens luso-inglesas da elite local, mas ameaçada de cair em desgraça por acumulação de dívidas decorrentes da quebra da atividade baleeira, e João Garcia, filho do contabilista da família de Margarida, que, por vários motivos aventados ao longo da história, não pode senão abortar os planos de desposar Margarida.
É redutor imaginar que se trata de um Amor de Perdição à moda dos Açores, apesar de os elementos de isolacionismo e de ditames socioculturais se imporem às relações de amor puro e livre, até porque a história evolui esquecendo, por longos momentos, João Garcia e o seu amor algo obsessivo por Margarida, em detrimento desta última e de uma variedade de personagens, incluindo alguns com grau de parentesco com os dois protagonistas, e tantos outros que, de figurantes ou inexistentes em algumas passagens, passam a personagens quase principais nas seguintes. É o caso do tio Roberto, do empregado Manuel Bana, ou ainda de Caetano, o Barão da Urzelina. Vem ao de cima o tabuleiro das relações sociais e dos circuitos de convivência, onde proprietários não se misturam com empregados, e onde Margarida fura essas regras com uma naturalidade e exceção assinaláveis.
Costumo ser crítico de livros demasiado longos, pois não raro concluo que o leitor poderia ter sido poupado a páginas desnecessárias, mas não é o caso com Mau Tempo no Canal. A história ganha nova forma e fôlego quando o tio Roberto aparece na ilha após décadas em Inglaterra; quando a caça à baleia em barco a remos é subitamente retomada; e quando, já perto do fim, ocorre uma cena de tourada tradicional, com tudo o que de cultural e simbólico lhe está associada. As diversas passagens avolumam os ricos elementos culturais insulares — vida piscatória e de relação umbilical com o mar, agricultura e pecuária nas ilhas, relação com a capital Lisboa, influência/ascendência inglesa e belga nas ilhas, emigração para os EUA, vivência das festas populares — que Nemésio plasma em texto com uma linguagem de exceção e com um entrelaçamento narrativo de superlativo conseguimento.
Talvez Mau Tempo no Canal só não consiga igualar a importância de um livro de Eça de Queirós por lhe ser posterior (e a posição já estar tomada), ou ainda porque a história se passa num ponto remoto e muito específico (ilhéu) da portugalidade, não representativo da capital ou da localidade portuguesa de meios pequenos. Fora isso, e ressalvando o recurso a uma maior interioridade psicológica em detrimento da exterioridade descritiva, este livro é um diamante do bem narrar e do bem compreender — e fundar — uma história num espaço-tempo menos conhecido literariamente, e naturalmente ignorado por aqueles alheios à história arquipelágica portuguesa.
Sobre um blackout ibérico por um dia, a eletricidade como bem básico, e um mundo cada vez mais batizado contra a calma
Há coisa de um mês e meio a ibéria apagou-se eletricamente durante um dia, e tudo o mais foi sobreviver à falta desse bem básico de que hoje também precisamos como do pão para a boca: eletricidade. Ter de descortinar se há heresia neste entendimento é obrigarmo-nos a trilhar o caminho do que se entende por básico e do que se entende por alimento. Não o vou fazer, insisto em que a eletricidade é, no ano de 2025, um bem básico sem o qual a humanidade regressa ao equivalente às cavernas, senão mais atrás ainda por falta de preparação até para o tempo das cavernas.
O que, sim, mais me apraz refletir é a velocidade com que efemérides insólitas surgem e se debelam todas as semanas, a um ritmo frenético e incessante. Nem é só a ideia de um mundo em constante mudança, é um mundo em revolução permanente, ao ponto dessas reviravoltas serem o normal e não a exceção. O que interessa o estado do tempo há 15 dias? Tanta água já correu debaixo das pontes desde então. O que interessa o estado do tempo dentro de 15 dias? Há tanta água para correr debaixo das pontes até lá!
Não mais haverá tempo para esperar e creditar a um profeta um total de 32 anos para operar uma revolução na relação do homem com os seus semelhantes e com o mundo. Hoje ele nem 32 minutos terá, ou para os ter, terá de conquistar (e pagar) por atenção coletiva.
Só pelo travão causado por efemérides causadoras de dor ou desespero pode a mensagem salvífica ainda penetrar e provocar impacto neste mundo tão batizado contra a calma. Fora disso o turbilhão diário, a disputa incessante do tempo na forma de atenção e desatenção, de fôlego cognitivo para compreensão ou desacreditação, do tanto de realidade que nos é ampliado e gratuitamente dado a dissecar, esmaga penitências, contrições e memórias inesquecíveis.
Este é o mundo indigerível por um estático e sucinto evangelho à moda antiga, um mundo onde o próprio Deus há de gastar um colossal quinhão de eletricidade só para se inteirar de tudo, fazer follow up, e encerrar para balanço o processador todas as noites. E a pergunta que não quer calar: o que é o saber estar num cenário destes? Seguir sempre e nunca travar? Travar quando nos couber em sorte uma grande missão que abdique sem pudor tudo o resto? Qual é a bússola e o sextante dos nossos tempos? Será elétrica, artificialmente inteligente, nuclear, quântica? Este é sem dúvida um mundo rendido ao ritmo, e último que apague a luz, mas só por um dia.
Caminhadas pela vizinhança (2025.5): diferenças entre não cientistas e cientistas, e a causa maior pela qual todos devemos lutar todos os dias
- "As Duas Culturas", por C.P. Snow, Editorial Presença, 1996
- Nuno Cardoso, no podcast A Beleza das Pequenas Coisas, 2025
Sobre Aurélio Pereira, um descobridor dos tempos modernos que revelou ao mundo o talento futebolístico português enquanto especiaria cultural muito apreciada mundialmente
Embora com manifesto atraso de semanas, cabe-me cumprir o que em consciência me sinto há algum tempo crescentemente impelido a sublinhar sobre Aurélio Pereira, descobridor português dos tempos modernos, cavalheiro que navegou pelas difíceis águas da observação de pessoas não para desencantar caminhos marítimos ou territórios físicos para a nação portuguesa explorar e prosperar, mas para descobrir talentos humanos numa atividade cultural impactante na afirmação dos países em todo o mundo, como é há várias décadas o futebol.
Sobre a releitura do livro 'A Viagem do Elefante' (José Saramago), uma divertida fábula histórica luso-austríaca, e a necessidade de desfrutar do agora e de confiar na chegada a bom destino
A releitura de um livro tido como favorito conduz invariavelmente à reequação se o mesmo continua merecedor de figurar nesse plano restrito dos que se perfilam em grau máximo de afeição. Foi precisamente o que me sucedeu ao reler A Viagem do Elefante, do incontornável José Saramago, livro que se apresenta como um conto que ficciona com grandes doses de bom humor e inventividade o episódio histórico verdadeiro da ofertação pela corte portuguesa de D. João III à corte austríaca de Maximiliano III de um elefante goês sito em Lisboa, a qual obriga a uma longa e extenuante viagem pedonal e fluvial pela Europa fora, até que Salomão (o elefante, mais tarde renomeado Solimão) e o seu cornaca (Subhro, mais tarde renomeado Fritz), juntamente com uma caravana composta por militares a cavalo, por bois e boieiros, por artesãos vários, e pelo próprio arquiduque e sua esposa, finalmente possam chegar ao destino, a cidade de Viena.
Efígies de substância (2025.3): o bom ou mau uso das tecnologias é tão antigo como o próprio homem; haja ética, cultura e leis para balizar cada invenção
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Efígies de substância visa estimular o pensamento e reflexão pela força do génio de cartoonistas capazes de surpreender e deliciar com as suas criações.








