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Sobre a escrita movida a agastamento

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The Lost Correspondent - Jason Decaires Taylo - 2012 ©
 

A escrita movida a agastamento é uma modalidade a que recorro quese sempre que o trilho da vida é pontualmene menos risonho.
Gostava de exaltar o prazer de escrever um texto alheado para os problemas que estejam a bater à porta para entrar, para as horas e aquilo que elas significam, para os objectivos de amanhã ou depois de amanhã, o simples, inocente, despreocupado, pacífico, calmo, divertido, prazeroso acto de escrever um texto.

O ser movido a agastamento não implica que transpareça na escrita o sentimento negativo. Para mim, saber que posso dar uma escapadinha para o textos com o mesmo sentimento de alívio com que as pessoas dão uma escapadinha ao Algarve, constitui um garante do meu equilíbrio. A motivação é condição chave para se escrever convictamente, sendo nisto que o agastamento por vezes sentido actua cabalmente. Se me puser a escrever sucessivas intervenções sem perda de motivação, saberei que quando cair exausto terei investido o meu tempo num processo de aprendizagem bastante mais recomendável do que aquele que normalmente surge na ausência desta fuga para a escrita: atormentar-me a ponto de um ataque de ansiedade, nervos e agonia em torno do elemento perturbador.

Repare-se como é bom poder evitar remoer aquilo que nos está a querer consumir, pela redacção de um texto. Se por vezes se pode duvidar daqueles escritores que afirmam escrever para eles próprios, não dando grande relevo ao papel dos leitores, talvez se consiga perceber que a escrita tem um efeito no escritor, que no caso em questão, passa pela intencional alienação dos assuntos que lhe provocam mal estar e consumição.
De certa maneira concordaria em comparar a escrita com um falar sozinho, mas sou rapidamente invadido por um sentimento de discórdia: aqueles que falam sozinhos sabem que o tema não é escolhido, antes imposto pela mente, segundo critérios próprios de importância dos assuntos.
Se me perguntarem quanto tempo demoro a escrever um texto, ao fim de tantos que já escrevi, seria obrigado a dizer que não sei bem. Há textos que quase se escrevem a eles próprios, pedindo ao autor que seja somente um portador da sua própria escrita.

4 comentários:

  1. A escrita é também muitas vezes usada por diversos psicologos, em que os seus pacientes escrevem cartas que nunca irão enviar, servindo apenas, muitas vezes, para exteriorizar e ordenar de certa maneira o que vai na alma de cada um, funcionando até como forma de terapia.

    Abraço

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  2. Caro Radar,

    Lembraste bem essa situação da psicologia.

    Lembraste-me inclusive do Fernando Pessoa e de como se transportava para os diferentes diferentes heterónimos mediante o estado de espírito que nele reinava, produzindo escritas condizentes com ele.

    Marcelo Melo

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  3. Se o produto final do que escrevi é do meu agrado, me preenche plenamente, funciona em mim como uma óptima terapia para o equilibrio da minha mente. Se o que tenha escrito esteja no campo de um texto criativo, apenas o consigo fazer em plena harmonia.
    É para mim impensável escrever sob a acção de um qualquer agastamento, pois escrever é brincar com as ideias e as palavras (exprimindo por vezes coisas muito sérias), vogando num mundo que se constrói ou que se vai construindo. Mas tal apenas é possível com a mente vazia de preocupações. Por essa razão considero que Tolstoi teve um indíce de criatividade extremamente alto. Por essa razão ainda, penso que os escritores de há 40 ou 50 anos beneficiavam de um mundo muito mais proprício a uma escrita profunda, sem que tivessem que enfrentar poluição existencial.

    Cumprimentos

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  4. Caro poeta,

    Permita-me discordar da sua exclusão ao agastamento enquanto motriz da escrita. Corrija-me se cometer algum erro ao dizer que Pessoa, de quem falei na resosta ao comentário anterior ao seu, foi dos autores mais criativos da nossa literatura e produziu material que espelha amplamente o agastamento que sentia (a dor de pensar).

    Além disso a poluição existencial não lhe era também apanágio? Eu conheço pouco de Pessoa, mas tenho a impressão de que a sua escrita não foi menos profunda por estar sob o feito do que o poeta chama de poluição existencial.

    Eu prefiro valorizar a motivação para escrever que o agastamento provoca, em mim, o qual se traduz numa escrita convicta que tem feito a deferência de ler. Eu não sei aparar os textos que redigi movidos a agastamento daqueles que não tiveram esse estímulo.

    Marcelo Melo

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