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Sobre a utilização de expressões religiosas

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Tendo-me transformado num indivíduo nada crente na existência de um deus, pelo menos na acepção religiosa da palavra, tropeço por vezes na utilização de expressões religiosas culturalmente incutidas no leque discursivo dos portugueses, e costumo indagar-me quanto à legitimidade e justificação da sua utilização.

Duas dessas expressões são as comuns “valha-me deus” e “deus me livre”. O problema destas forças de expressão não está tanto na referência ao divino, antes na implicação de quem as enuncia com o divino. Como pode valer deus a quem não acredita que ele exista? Como poderá deus livrar alguém do que quer que seja se esse alguém admite a inexistência da dimensão deífica?

Ora é com esta trama argumentativa que surge a confusão de se ser apanhado a utilizar expressões como as referidas. Se é verdade que desconfio que o meu interlocutor geralmente não se apercebe da minha reticência sobre a utilização, também o é que quaisquer que sejam as suas convicções religiosas, o objectivo semântico da formulação é atingido sem dubiedades de assinalar.

Aquilo que num registo mais distante nos poderá convocar para discussão é a tese que aquando da utilização destas expressões, a referência a deus está lacrada em termos de conexão com a crença religiosa. No fundo, quer isto dizer que nos valemos destas interjeições concentrados na manifestação de ânimo em contraposição das implicações identitárias com a significância da expressão.

Já falara antes da dificuldade em anular os indícios religiosos no estado, mas o caso exposto revela que, em termos culturais, também na sociedade está patente uma dimensão religiosa que ganha visibilidade quando no uso da língua há o cuidado de espelhar as convicções e os ideais de um indivíduo.

Ainda não encontrei resposta para esta questão, porque o desconforto de proferir expressões falsas para mim é acalmado pela sensação de objectividade na transmissão do discurso.

6 comentários:

  1. Meu caro Marcelo Melo
    Para este tema que aborda apenas existem duas saídas: ou Deus existe ou Deus não existe. Eu ponho a questão a ficar refém do «ou», porque o meu filho mais novo ( com 19 anos, futuro arqueólogo, como tal tem uma concepção de Deus baseada apenas em conceitos históricos e nada mais)tem tido algumas picardias comigo precisamente por causa desta questão, e eu, por isso mesmo, e pela experiência que já tenho submeto-me à força do «ou».
    Se Deus não existir, não o ouve, como tal essas expressões são lançadas ao vento, vazias de significado, e o vento encarregar-se-á de lhes fazer qualquer coisa, que tem sempre um resultado inócuo para quem as proferiu.
    Se Deus existe, meu amigo, não esteja preocupado com o que Deus pensará de si. Mas decerto não dirá: olha-me para o desplante deste gajo, que não acredita na minha existência e constantemente me invoca.
    A razoabilidade de Deus vai um pouco mais além do que isso, porque tem consciência de que, acreditemos nele ou não, todos somos uma sua centelha, plenamente iguais no seu juízo, com livre arbítrio para fazermos da nossa vida o que quisermos, para termos os conceitos que desejarmos, na condição porém de terminada a nossa vida, arcarmos com as responsabilidades dos nossos actos. Atenção que não acreditar em Deus não é um acto. Você não acredita na sua existência, e no entanto pode pautar a sua vida numa muito maior comunhão com Deus do que muitos que vão à missa todos os dias, e comungam, e fazem esses rituais todos e sabem de cor toda aquela ladaínha.
    Viva pois feliz, e á vontade deixe escapar o «valha-me Deus», que Deus o ouvirá.
    Com amizade.

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  2. as palavras proferidas pelo poeta do penedo é de todo uma verdade, mas quero registrar sobre o teu texto a minha certeza, hoje gosto muito de assistir a certas cerimonias não somente pela forma como elas são conduzidas mas pelo seu significado simbolico, em nossas vidas muitas vezes somos levadas ao afirmar ao acaso a existência de forças maiores para justificar nossos erros e alguns acertos, tenho em consciência que deus pode ou não existir, isto muito me depende da forma como eu quero enxergar o mundo e quais as saidas quero propor para este.

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  3. Caro Poeta do Penedo,

    Assim tenho feito.

    Depois da 1ª vez em que me apercebi deste embróglio duvidoso, continuei a usar as expressões quando estas naturalmente me ocorrem.

    Senti-me foi com vontade de revelar este caso, visto que me preocupo com a coerência da minha personalidade.

    Obrigado pelo seu comentário.

    Marcelo Melo

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  4. Caro Poeta do Inverno,

    Nesta questão pessoal, devo dizer que não posso ser acusado de desconhecer o lado oposto: fui cristão durante 15/16 anos da minha vida, tendo sido após essa idade que me transformei em descrente.

    Estudei num colégio religioso durante 6 anos e fiz também 6 anos de catequese. Participei em missas como acólito e cheguei a cantar 1 salmo na cerimónia da minha comunhão solene.

    Acontece que racionalmente dei comigo numa posição divergente da posição religiosa, em particular católica, e enveredei por uma vida desprovida de deus.

    Na minha vida mental, conto comigo apenas, estou só e prefiro que seja assim.

    Grato,

    Marcelo Melo

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  5. Caro Marcelo
    O teu texto faz bastante sentido, já que tenho vindo a seguir o facto que comentas há algum tempo e são muitas as pessoas que estão na tua posição.
    Não tenho muito a acrescentar a estes comentários, já que acho que o caro Poeta do Penedo acertou nos pontos essenciais inerentes a esta questão e muito bem.
    Iria só acrescentar um ponto: é claro que Deus não se chateia por falarmos nele, mesmo irreflectidamente. Mesmo que seja só em situações complicadas para nós ou de desespero. Porque mesmo irreflectidamente, o que interessa é que estamos a falar Dele. E mesmo inconscientemente, toda a gente O invoca quando precisa.
    Pode até uma pessoa não ser crente, mas o que é certo é que toda a gente se vale Dele quando se vê aflito.
    Um abraço,
    Ivo Pais

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  6. Amigo Ivo,

    Compreendo o que dizes, embora me deixe um amargo na boca (e na mente) essa ideia de que quando me vir aflito recorrerei a deus quer queira quer não.

    Apesar de conceber que deus acaba por ter o seu espaço mesmo quando se lhe nega a existência, porque a condição vital para uma contraposição é a existência de 2 lados contraponíveis, acho que é possível levar uma vida sem o convocar para o meu universo pensante.

    A partir do momento que deixei me apoiar nele como resposta para fracassos ou sucessos, comecei a estar mais consciente de mim e das consequências da minha existência e forma de ser no mundo.

    Quanto às expressões, há que dizer que são o espelho do condicionamento cultural que qualquer ser humano sofre para estar em sociedade.

    Marcelo Melo

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