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Sobre o livro 'Eurico, O Presbítero' (Alexandre Herculano), e um raro e magistral exemplo da língua portuguesa a ficcionar primórdios da sua história, num épico de cavalaria ibérico

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Together As One - Beau Simmons (2023)

A imagética que serve de substrato à literatura de ficção não cobre irmãmente os tempos históricos ao dispor. Há períodos sobre os quais os intentos literários são praticamente inexistentes, e facilmente nestes poder-se-ia referenciar os séculos que antecedem a fundação da nação portuguesa. É precisamente sob essa zona de razia de criação literária que se insere a história de 'Eurico, o Presbítero' a qual narra uma península ibérica fragmentada territorialmente, cristã, sob um conturbado comando visigodo.

Se desse tempo há naturalmente para descrever múltiplas efemérides bélicas e políticas decorrentes das pelejas para fazer vingar a soberania dos povos ibéricos, marcadas tanto por dissenções internas como pela grande ameaça muçulmana, a mestria de Herculano faz emergir a personagem polivalente de Eurico um guerreiro (gardingo) convertido a padre (presbítero) e resgatado a temível cavaleiro (cavaleiro negro) por força de circunstâncias de vida ou morte do seu Deus, do seu povo, e da sua amada.

A personagem de Eurico e os contextos que a acompanham conferem uma polissemia interessante à obra que permite entendê-la para lá do âmbito histórico óbvio em que decorre; reflete-se também na organização social (classes), na psicologia humana  (paixões), e ainda na dimensão moral (a vivência da fé cristã) pelos visigodos.

Para quem, como eu, não valoriza enquanto tema a guerra e a violência, ressalvo desta obra a ousada sediação a tempos tão pouco familiares de dilemas tão atuais como a frustação do amor por motivos de estatuto social ou económico; e a lógica do celibato como fator de castidade e pureza divina em líderes espirituais.

Sendo a história de Portugal tão pródiga em dinastias monárquicas, tão vasta no espaço temporal que abarca, e tão coroada pela expansão marítima pelo mundo, Alexandre Herculano assinala com esta obra um ponto de honra a todos os que defenderam a Península Ibérica e a quiseram consolidar como território uno.

Cabe a cada um definir o que considera ter de estar reunido para que uma obra seja considerada magistral e para que um escritor possa ascender ao púlpito restrito dos predestinados, mas creio que Alexandre Herculano, com Eurico, exponencia uma qualidade criativa, um estilo de escrito, e um domínio linguístico superlativos digno dos melhores maestros literários em português.

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