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Sobre o livro 'Autópsia de um Mar de Ruínas' (João de Melo) e uma magistral, empática, e traumatizante explicitude literária sobre a guerra colonial portuguesa em Angola

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O livro 'Autópsia de um Mar de Ruínas', da autoria de João de Melo, publicado originalmente em 1984, é uma magistral obra de ficção tangível de realismo centrada no tema da Guerra Colonial Portuguesa. A ação passa-se no norte de Angola e a personagem principal é um furriel enfermeiro que em muito personifica o próprio escritor na sua experiência em primeira pessoa da Guerra Colonial Portuguesa em território angolano. Este furriel encontra-se a braços com um conflito bélico de que é alheio, e vê-se em permanente dissenção ética com a visão de que o povo local - os nativos - são inimigos sem qualquer exceção, e merecem ser injustiçados, mal tratados e aniquilados impiedosamente.

Faço esta leitura após ter lido 'A Costa dos Murmúrios', mas encontrei neste livro uma perfeição superior ao que já era um nível extremamente apurado do livro de Lídia Jorge. Aqui, João de Melo não só retrata a guerra pelo seu interior, com retratos vívidos e pormenores terríficos do caos e fealdade dos combates; como também recria os dois lados da barricada, sequenciando os capítulos com narração alternada entre o contexto e psicologia do invasor, e o contexto e psicologia do invadido. Esta mescla é evidenciada não só pela linguagem adotada como também pela estrutura de pensamento de duas culturas no entendimento diverso de uma realidade a que estão unidas. Há uma abundância, dureza, e explicitude de episódios pelo livro, tanto de ambiente militar em cenário e manobras de combate, como  de socorro médico a feridos e mortos em combate, como também ainda de injustiças (sexuais, por exemplo) da subjugação das comunidades locais ao jugo branco. Esta diversidade apimenta a narração a ponto de a fazer transpor o já de si importante plano da memória descritiva ficcionada, para cristalizar denúncias indeléveis para a posteridade (apenas veladas pelo plano ficcional da obra) sobre o que fomos capazes de fazer a outros seres humanos há muito poucas décadas atrás.

Com o passar dos anos, deixar-se-á de escrever mais e mais sobre a Guerra Colonial Portuguesa, mormente a partir de vivências de causa própria, e por isso me parece que este glorioso livro não terá jamais rival no estilo e no conteúdo. João de Melo mostra a humanidade possível no meio da desumanidade que é a guerra, a ignorância, a pobreza e o racismo.

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