A releitura de um livro tido como favorito conduz invariavelmente à reequação se o mesmo continua merecedor de figurar nesse plano restrito dos que se perfilam em grau máximo de afeição. Foi precisamente o que me sucedeu ao reler A Viagem do Elefante, do incontornável José Saramago, livro que se apresenta como um conto que ficciona com grandes doses de bom humor e inventividade o episódio histórico verdadeiro da ofertação pela corte portuguesa de D. João III à corte austríaca de Maximiliano III de um elefante goês sito em Lisboa, a qual obriga a uma longa e extenuante viagem pedonal e fluvial pela Europa fora, até que Salomão (o elefante, mais tarde renomeado Solimão) e o seu cornaca (Subhro, mais tarde renomeado Fritz), juntamente com uma caravana composta por militares a cavalo, por bois e boieiros, por artesãos vários, e pelo próprio arquiduque e sua esposa, finalmente possam chegar ao destino, a cidade de Viena.
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Sobre a releitura do livro 'A Viagem do Elefante' (José Saramago), uma divertida fábula histórica luso-austríaca, e a necessidade de desfrutar do agora e de confiar na chegada a bom destino
Tourists Lounge Poolside, Sri Lanka - Steve McCurry (1995)
Este livro tem vários aspetos elogiáveis. Em primeiro lugar é uma prosa saramaguiana de muito fácil e ligeira compreensão, o que desmonta a ideia de que a literatura dos grandes autores é sempre exigente e inacessível, e portanto evitável pelo grande público. Depois, há neste livro um vaivém temporal entre o século XVI em que tudo se passa e a atualidade temporal em que a história é escrita. Cite-se a título de exemplo simbólico a deliberada comparação crítica que Saramago cria entre o povoado italiano de Bressanone estar vocacionado para os transeuntes alemães e austríacos, e a situação portuguesa do Algarve, na atualidade, estar voltado para turistas ingleses e franceses. A esse vaivém acresce ainda um outro vaivém discursivo do narrador, ora focando no fio da história, contada em progressão mas permitindo-se a descontinuidades de narração; ora com o narrador focando em si mesmo enquanto maestro do livro, divagando descaradamente mas com sentido de humor; ora usando a narração para centrar e demorar o leitor de forma subtil sobre temas reflexivos como a lógica da religião hindu versus do cristianismo; este último e a reforma luterana; o que de eterno separa e o une diferentes classes sociais; as diferenças culturais entre povos da Europa; o papel dos animais para o homem; ou, como mote chave, na vida enquanto viagem e na necessidade imperiosa de desfrutar do agora e de confiar na chegada a um bom destino que nos cumpra alcançar.
Segundo se sabe, Saramago escreveu este livro apenas e só porque o desfecho histórico real do elefante ofertado foi ter sido esfolado e as suas patas ficarem a servir de bengaleiro num qualquer recanto de um palácio austríaco. Se acrescentarmos que o escritor produziu este livro em dois atos, e que pelo meio esteve em coma e num transe de quase morte, é extraordinário fazer acompanhar esta leitura da perceção de que um homem tão débil na sua relação com a vida empreendeu contar em formato de fábula, e de forma divertida e leve, o fazer pela vida de um elefante que se viu atribulado na sua condição e que cumpriu o seu destino "sempre chegando ao sítio onde o esperavam".
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