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Sobre o livro 'Mau Tempo no Canal' (Vitorino Nemésio) e uma história de amor que é na verdade um quadro sociocultural multifacetado da sociedade açoriana no princípio do século XX

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Retired Whaling Captain's Study, Nantucket, circa 1860 - Eugene Kupjack (1983)


O livro Mau Tempo no Canal, do açoriano Vitorino Nemésio, narra uma história insular centrada em Angra do Heroísmo (ilha Terceira), que se inicia tendo como pano de fundo um romance não assumido entre Margarida Dulmo, filha de uma família com origens luso-inglesas da elite local, mas ameaçada de cair em desgraça por acumulação de dívidas decorrentes da quebra da atividade baleeira, e João Garcia, filho do contabilista da família de Margarida, que, por vários motivos aventados ao longo da história, não pode senão abortar os planos de desposar Margarida.

É redutor imaginar que se trata de um Amor de Perdição à moda dos Açores, apesar de os elementos de isolacionismo e de ditames socioculturais se imporem às relações de amor puro e livre, até porque a história evolui esquecendo, por longos momentos, João Garcia e o seu amor algo obsessivo por Margarida, em detrimento desta última e de uma variedade de personagens, incluindo alguns com grau de parentesco com os dois protagonistas, e tantos outros que, de figurantes ou inexistentes em algumas passagens, passam a personagens quase principais nas seguintes. É o caso do tio Roberto, do empregado Manuel Bana, ou ainda de Caetano, o Barão da Urzelina. Vem ao de cima o tabuleiro das relações sociais e dos circuitos de convivência, onde proprietários não se misturam com empregados, e onde Margarida fura essas regras com uma naturalidade e exceção assinaláveis.

Costumo ser crítico de livros demasiado longos, pois não raro concluo que o leitor poderia ter sido poupado a páginas desnecessárias, mas não é o caso com Mau Tempo no Canal. A história ganha nova forma e fôlego quando o tio Roberto aparece na ilha após décadas em Inglaterra; quando a caça à baleia em barco a remos é subitamente retomada; e quando, já perto do fim, ocorre uma cena de tourada tradicional, com tudo o que de cultural e simbólico lhe está associada. As diversas passagens avolumam os ricos elementos culturais insulares — vida piscatória e de relação umbilical com o mar, agricultura e pecuária nas ilhas, relação com a capital Lisboa, influência/ascendência inglesa e belga nas ilhas, emigração para os EUA, vivência das festas populares — que Nemésio plasma em texto com uma linguagem de exceção e com um entrelaçamento narrativo de superlativo conseguimento.

Talvez Mau Tempo no Canal só não consiga igualar a importância de um livro de Eça de Queirós por lhe ser posterior (e a posição já estar tomada), ou ainda porque a história se passa num ponto remoto e muito específico (ilhéu) da portugalidade, não representativo da capital ou da localidade portuguesa de meios pequenos. Fora isso, e ressalvando o recurso a uma maior interioridade psicológica em detrimento da exterioridade descritiva, este livro é um diamante do bem narrar e do bem compreender — e fundar — uma história num espaço-tempo menos conhecido literariamente, e naturalmente ignorado por aqueles alheios à história arquipelágica portuguesa.

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