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Sobre a temporização da criação e comunicação de uma ideia, o teste prévio de pressupostos, e o encontrar um contexto externo certo para o seu lançamento

Internal Shape 09 - Harumi Nakashima (2019)


Uma ideia acesa numa cabeça é uma lâmpada apagada para o mundo, exceto naturalmente para os poucos que sabem ou suspeitam da sua existência. Uma lâmpada acesa no exterior de uma casa é uma constatação se for vista à noite pelos que estão em seu redor ou pelos passantes, mas é uma camuflada evidência durante um dia. luminoso. Também as ideias na cabeça se mostram melhor na noite dos eventos, quanto não há luz, esperança ou tempo a perder.

Fazer uma ideia transpor a barreira da interioridade cerebral para o mundo exterior é um momento de coragem, como que um trabalho de parto. E é muito arriscado fazer evoluir uma ideia nessa interioridade - fazer-lhe a gestação - e nunca a por a teste ou melhoria pelo confronto ou experimentação com a realidade. As ideias podem assumir a configuração de protótipos, de concretizações testáveis ainda sob vislumbre parcial da sua magnitude ou potencial plenos, e com isso determinados pressupostos que lhe são subjacentes podem confirmar a sua validade enquanto hipóteses ou argumentos de plausibilidade.

A pressa é inimiga da perfeição, e no que toca a ideias, boas ou más, há um tempo para estas amadurecerem. A colheita de uma ideia, tal como um fruto, deve esperar pela maturação certa - processo interior e evolutivo - mas também pelo contexto exterior adequado, pois de nada vale trabalhar a perfeição apenas pela vertente egocêntrica, e esquecer que aquilo que Miguel Torga terá escrito um dia, que as virtudes terapêuticas da fonte estão bem na certeza de sede de quem a procura.

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Sobre o livro 'A Costa dos Murmúrios' (Lídia Jorge), e uma pungente memória ficcional da Guerra Colonial Portuguesa centrada nas mulheres dos oficiais que nela combateram


Hiatus - Laura J. Padgett (2019)

 O livro A Costa dos Murmúrios é um importante contributo de ficção autorado pela escritora Lídia Jorge sobre a memória Guerra Colonial Portuguesa. Escrito numa toada onírica, de quem recorda já sobre fortes camadas de recalmento e retoque, o leitor é convidado a entender e reentender a trama como produto de clarificações e acrescentos ao longo das páginas, e do confronto entre a honestidade factual e o truncamento narrativo para autodefesa ou autoexplicação. Lídia Jorge escreve sobre alguém que reescreve retrospectivamente uma história pessoal, e com isso desvenda o tumulto, ansiedade e desgosto do tempo da ação, contraposto à tranquilidade do desprendimento emocional e consolidação explicativa permitidos pela distância temporal aos eventos narrados.

A história orbita na personagem de Evita, que é mulher de um alferes. A história dicotomiza fortemente a visão do homem militar que sonha com heroísmos medalháveis em cenário e tempos de guerra; e o lado das esposas destes, enquanto figuras reprimidas e remetidas ao papel machista de mães, esposas, donas de casa ociosas, com um querer próprio e liberdade tíbios, e onde o único horizonte existencial é sonhar com o fim da guerra e/ou, pecaminosamente, com o fim dos companheiros a quem não mais reconhecem chama amorosa e empatia. Relações interpessoais desfiguradas, valores pessoais amolgados e relativizados.

A ação decorre em Cabo Delgado, Moçambique, e a beleza natural que é amplamente narrada revela-se um bâlsamo insuficiente para subverter a escuridão da revolta interior de se estar contrariado num território e numa guerra que não se deseja; de se defender e comportar sob entendimentos supremacistas impeditivos da paz e da concórdia; e do desvirtuamento dos valores e da identidade em militares engolidos pela experiência de guerra.

Lídia Jorge é sublime no mostrar que mais do que uma vitória ou derrota territorial, a Guerra Colonial fez perder vidas, e fez danificar vidas aos seus sobreviventes. Esse impacto indelével condicionou a felicidade e o destino de muitos militares e de muitas famílias de militares portugueses. O livro não explora a contrapartida do lado africano, mas adivinha-se, em espelho e por empatia humanista, idênticos dramas e prejuízos nos combatentes contrários.

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Efígies de substância (2024.4): num mundo cada vez mais intrincado, os papeis clássicos do bem e do mal estão ameaçados pela classe do moralmente ambíguo

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Efígies de substância visa estimular o pensamento e reflexão pela força do génio de cartoonistas capazes de surpreender e deliciar com as suas criações.

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Sobre o livro 'A Queda de um Anjo' (Camilo Castelo Branco), e a tragédia resultante de arrumarmos o mundo exterior em datadas prateleiras mentais

Revelation - Jim Rennert (2022)


Demorei um pouco a plasmar em palavras a impressão que me deixou o livro "A Queda de um Anjo", do incontornável Camilo Castelo Branco. Esta leitura aguardava oportunidade para ser feita, e o que a antecipava muito apelativa era a ideia (confirmada) da história ser original: um fidalgo do interior é desterrado para a capital para exercer o seu cargo de deputado e cai em desgraça devido aos vícios ali encontrados.

A história é essa, mas não com os contornos que lhe imaginara, pelo menos no que se entende por vícios. Calisto Elói - o personagem principal - é sobretudo um homem regido por relações geneológicas, daqueles que estuda e apregoa a pureza do seu sangue e que fiscaliza a (im)pureza da linhagem dos outros, usando-a como critério de aceitação das pessoas que o entornam. Esta é, de resto, a força diretriz dos factos narrados na história, não só porque explica um casamento precoce e por conveniência de Calisto com uma prima local que nunca amou; como também porque preside à decisão de se amantizar na capital por uma vistosa senhora vinda do Brasil de quem ao início se descobre ser parente de boa linhagem, e da qual mais tarde se faz novo marido. 

Como o culto ao bom nome genealógico é um exercício que coloca ênfase total no passado, Calisto  Elói revela no parlamento uma oratória que surpreende pelas referências e imagens anciãs que cita, pelo estilo com que articula e argumenta; e pelas ideias conservadoras e ultra tradicionalistas com que mede e calibra as discussões parlamentares e os perfis oratórios dos colegas no hemiciclo.

Tudo isto acaba por ruir com estrondo, e ainda bem, porque a expansão da cosmovisão e o viver no presente nunca fizeram mal a ninguém e são uma estrada sem retorno. A haver queda (do anjo) essa é a que resulta da tomada de consciência de que o mundo é sempre mais plural do que somos capazes de antever, sobretudo quando cultivamos redomas de segurança que ingenuamente o catalogam em datadas prateleiras mentais.

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Sobre o filme 'Nunca Desistas', e uma boa história de empoderamento de mulheres, professores e pais no sentido do bem comum e de igualdade sociais em matéria de educação

Há filmes muito bons que estranhamente poucos viram e dos quais muito pouco se fala. É esse o caso do filme Nunca Desistas (direção de Daniel Barnz, argumento de Daniel Barnz e Brin Hill), uma história inspirada em factos reais, que versa sobre a recuperação de uma escola pública decadente por parte de uma professora sonhadora (por Viola Davis) e de uma mãe desesperada (por Maggie Gyllenhaal). O filme tem um quê de kafkiano, pois a boa intenção das duas  líderes da história esbarra na obscura posição política do sindicato dos professores, e nas perdas de tempo que a burocracia governamental impõe a quem ousa promover alterações ágeis e coadunáveis com períodos letivos.

Numa época em que se fala tanto de empoderamento eis aqui um bom filme de concretização dessa filosofia, centrado na iniciativa de duas mulheres, centrado em princípios de cidadania ativa, e apelando a que os professores e encarregados de educação não desistam do lutar pela escola que sonham para seus alunos e educandos, respetivamente. Poucos exemplos mais nobres podem ser invocados do que o trabalhar para o bem comum e do que o trabalhar para inverter as igualdades sociais. 

Por tudo isto e também pela sua capacidade de entreter, o filme Nunca Desistas foi uma excelente surpresa. Muito estranho a sua falta de repercussão, reconhecimento e divulgação, mas aqui fica o meu testemunho e contributo para inverter tal injustiça. 
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Sobre o caminho dos 'a priori', e o desafio de clarividência para resolver problemas por antecipação, sem confronto e em salvaguarda da harmonia social

Coexistencia I - Mario Núñez (2015)


Uma parte natural da tensão sentida quando se assumem papeis de liderança de um agregado social prende-se com o assegurar o cumprimento do padrão comportamental e de valores que se ambiciona ver implementado nesse ecossistema. Esta tensão existe desde logo na esfera familiar pela tentação possessiva inerente à consanguinidade; mas irrompe também em cenários coletivos como um condomínio, um bairro, uma escola. uma freguesia, uma equipa, e/ou um grupo de trabalho.

Claro está que há menos margem para intervir em domínios extrafamiliares, mas mesmo em domínios familiares há idades e etapas de mais fácil consenso e outras de mais aguerrido confronto das regras ou de menos pacífica reinvindicação. O indivíduo é deixado assim numa encruzilhada de desafios, em que equilibrar posições e manter a coerência são objetivos asseguráveis apenas sob considerável esforço e capacidade de encaixe.

Por outro lado, as coisas são verdade quer as vejamos quer não, mas a contrariedade suscitada por coisas imperfeitas dói-nos em relação direta com a consciência e atenção que lhes prestamos. Um paliativo para o ímpeto de confrontação contra as brechas no cumprimento do padrão comportamental e de valores é o afastamento, mas com esse pode vir a alienação, a desumanização, e o alheamento de situações que a prazo evoluem para problemas maiores e ingeríveis. Outro, menos óbvio, é o trabalhar sob os a priori do tema alvo de quezília, de modo a propiciar ajustes a montante do problema, conducentes a que este seja resolvido (ou muito mitigado)  pela via de o fazer evitar surgir.

Um exemplo prático que me ocorre é o da acumulação de lixo fora dos contentores na via pública. Ao invés de se entrar em rota de colisão com todos os que se dirigem ao contentor cheio e ainda assim depositam fora deste o seu lixo, é possível solicitar que dois contentores possam ser colocados naquele ponto que um parece estar a ser insuficiente para o efeito; ou pedir que a recolha naquele ponto seja intensificada. Estas formas de atuar eclipsam os danos relacionais sempre que se segue pela via de confrontar outros seres humanos. Preserva-se um bem maior que é a harmonia, sem prejuízo de aplacar problemas importantes.

O que nem sempre há, e aí mea culpa para o género humano e seus castrantes processos formativos, é clarividência para atuar de uma forma mais holística e preventiva nos sistema humanos. E é aqui, a montante de todo o qualquer problema, e de todo e qualquer agregado social, que há trabalho estrutural a fazer para pavimentar o caminho que resolve problemas evitando o confronto e, com isso, em salvaguarda da harmonia.

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Sobre o livro 'O Deus das Pequenas Coisas' (Arundhati Roy), e uma história de amor trágica que intersecta variados pontos sensíveis daquilo que se entende como "a" Índia

Curtain: Mojilal Manilal - Bhupen Khakhar (1992)


O livro O Deus das Pequenas Coisas, da escritora indiana Arundhati Roy, compreende uma trama de base simples mas riquíssima e criativa nos paralelos e contrastes que a adornam. Sem revelar demasiado, o livro conta uma história de amor entre duas pessoas de castas diferentes, e o desmoronar de uma família já de si disfuncional devido à convulsão criada pela consumação de um vínculo afetivo tido como proibido pela sociedade e famílias.

O que é diferenciado e valioso nesta história em particular, sobretudo para um leitor ocidental, é que toda a ação se passa no estado indiano de Kerala e abarca de forma mais do que generosa o caleidoscópio cultural, étnico, ideológico de que a Índia é feita. Basta ver que Roy congrega e confronta na história cristão sírios e hindus; o patronato e o operariado industrial; os movimentos político pró-marxistas (naxalitas); o legado britânico e formas de lidar com ele (valorizando-o ou desprezando-o); o racismo pela cor da pele entre concidadãos indianos; o sexismo masculino e a tolerância para com o assédio sexual na Índia. A lista poderia continuar com bastantes mais exemplos.

Para quem tenha curiosidade pela Índia e seu funcionamento O Deus das Pequenas Coisas é um inesperado manual de cariz ficcional, que vai desvendando uma história trágica de amor página após página, complementando-a progressivamente com elementos de contexto que servem diretamente como especiarias para o enredo (e qualidade do livro); e indiretamente como denúncia e crítica social. Sendo Roy arquiteta de formação, estamos perante uma obra de autor, de tremenda traça estética, e plena de intencionalidade nos pormenores.

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Sobre o espetáculo humorístico 'Desconfia' (Joana Marques), e a necessária denúncia ao pouco escrutinado universo da autoajuda e do coaching

Self-Portrait with Falling Sky - Julie Heffernan (2011)


Tenho grande propensão para ouvir analistas desde que o que tragam para comunicar seja novo e credível. Acho meritório que se consigam detetar padrões sobre o que à vista desatenta pareçam episódios avulsos de um mundo caótico, e que com isso se edifiquem ou esculpam teses organizadas que sirvam de hipótese para descodificar a realidade e apurar a verdade.

Serve isto para prefaciar a minha experiência no espetáculo humorístico Desconfia, assinado pela humorista Joana Marques, que expôs e ridicularizou a enxurrada de (auto)proclamados especialistas em autoajuda através da denúncia em jeito de paródia da polpa programática que preconizam. Do coaching motivacional à positividade tóxica, passando pelos aforismos estilo previsão meteorológica, tudo convergiu para mostrar como pessoas que se convencem demasiado de si próprias levam incautos  concidadãos a pensarem que estão perante sábios do desenvolvimento pessoal, profissional, alto rendimento.

Fui muito bem e divertidamente surpreendido pelo alinhamento metódico e organizado, com forte condão satírico, e com aquilo que todos gostamos em contexto de aprendizagem: casos concretos. E todos extraídos da mesma praça pública onde são depositados gratuitamente por quem dela quer colher louros e cifrões. Julgo que um dos motivos para ter gostado do que encontrei deve-se a que as opções de comédia são não raro curtas no espectro de temas que se propõem parodiar. 

 No rescaldo das gargalhadas, consenti que algumas ideias sérias sedimentassem sobre este mesmo assunto, e passo a ocupar-me delas:


1. A procura atual por apadrinhamento motivacional tem respaldo no esvaziamento da crença religiosa onde há um Deus que serve de escoadouro das preces e fornece doutrina orientadora. Várias das personalidades do coaching e/ou guardiães da inspiração preenchem vazios (de esperança ou de relativização) desconfortáveis no percurso das pessoas, e a ligação ao grupo tem tanto ou mais poder do que o rigor e mérito do conteúdo veiculado para preencher os vazios. Tal qual numa religião.

2. O mundo digital onde muito disto se passa sobrepôs-se a milénios de filósofos e seu preceitos, a conteúdos repletos de matéria moral aplicável às vidas das pessoas, ou mesmo às máximas potentes que nos deixaram. Substituiu-os por pessoas sagazes que otimizam a mensagem para conseguir deter canais comunicacionais com muito público (alcance), sem a necessária revisão de pares, e onde para que consigam aportar alguma coisa aparentemente nova, proprietária, de cunho pessoal, inventam pegado e usam de criatividade para impressionar a audiência mas não necessariamente para lhe fornecer a verdade.

3. Existe uma propensão para criar e promover fórmulas absolutistas de sucesso no meio da autoajuda, criando uma ideia de que o mundo tal qual é para cada pessoa deve encaixar nessas fórmulas, ao invés de ser cada pessoa a identificar para o mundo que lhe coube viver que tipo de diretrizes se revelam mais adequadas como farol para a sua situação em concreto.

4. O produto da autoajuda não tem de implicar sermos os melhores do mundo ou sermos imbatíveis como pessoas ou profissionais. Há uma tendência ao radicalismo nesta horda de locutores que ganha a vida a motivar e guiar os outros. O saudável é as pessoas assumirem as suas derrotas ou erros, até porque a sua derrota é muitas vezes a vitória do colega do lado. Uma coisa é ter espírito vencedor em permanência, outra é vencer em permanência. Esta última é impossível.

5. Não é credível que a autoajuda assente somente em grandes e inabaláveis certezas. A dúvida faz parte do processo de autoconhecimento e do processo de evolução. Parece inevitável concluir que o super homem e super mulher para quem muito se aponta no mundo da autoajuda é aquele/a que marcha sem se olhar ao espelho e questionar, a espaços, se está no trilho certo ou não, como que pode melhorar, que porção de sorte/azar ou de mérito/demérito tem a conjuntura que está a viver. É um rei que vai nu e disso se orgulha ao espelho, pelo menos assim diz aos outros. 


Por me fazer rir e por tudo isto que me fez pensar saúdo o espetáculo Desconfia. As portas de entrada na reflexão e na extração de aprendizagem moram também na comédia, e é especial quando assim o é, porque o humor que abunda é o da superficialidade.

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Efígies de substância (2024.3): criar uma criança é participar numa investigação bidirecional, sem precedentes, e de enorme repercussão


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Efígies de substância visa estimular o pensamento e reflexão pela força do génio de cartoonistas capazes de surpreender e deliciar com as suas criações.

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