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Sobre o livro 'Autópsia de um Mar de Ruínas' (João de Melo) e uma magistral, empática, e traumatizante explicitude literária sobre a guerra colonial portuguesa em Angola

The Last Soldier - Mehdi Ghadyanloo (2020)


O livro 'Autópsia de um Mar de Ruínas', da autoria de João de Melo, publicado originalmente em 1984, é uma magistral obra de ficção tangível de realismo centrada no tema da Guerra Colonial Portuguesa. A ação passa-se no norte de Angola e a personagem principal é um furriel enfermeiro que em muito personifica o próprio escritor na sua experiência em primeira pessoa da Guerra Colonial Portuguesa em território angolano. Este furriel encontra-se a braços com um conflito bélico de que é alheio, e vê-se em permanente dissenção ética com a visão de que o povo local - os nativos - são inimigos sem qualquer exceção, e merecem ser injustiçados, mal tratados e aniquilados impiedosamente.

Faço esta leitura após ter lido 'A Costa dos Murmúrios', mas encontrei neste livro uma perfeição superior ao que já era um nível extremamente apurado do livro de Lídia Jorge. Aqui, João de Melo não só retrata a guerra pelo seu interior, com retratos vívidos e pormenores terríficos do caos e fealdade dos combates; como também recria os dois lados da barricada, sequenciando os capítulos com narração alternada entre o contexto e psicologia do invasor, e o contexto e psicologia do invadido. Esta mescla é evidenciada não só pela linguagem adotada como também pela estrutura de pensamento de duas culturas no entendimento diverso de uma realidade a que estão unidas. Há uma abundância, dureza, e explicitude de episódios pelo livro, tanto de ambiente militar em cenário e manobras de combate, como  de socorro médico a feridos e mortos em combate, como também ainda de injustiças (sexuais, por exemplo) da subjugação das comunidades locais ao jugo branco. Esta diversidade apimenta a narração a ponto de a fazer transpor o já de si importante plano da memória descritiva ficcionada, para cristalizar denúncias indeléveis para a posteridade (apenas veladas pelo plano ficcional da obra) sobre o que fomos capazes de fazer a outros seres humanos há muito poucas décadas atrás.

Com o passar dos anos, deixar-se-á de escrever mais e mais sobre a Guerra Colonial Portuguesa, mormente a partir de vivências de causa própria, e por isso me parece que este glorioso livro não terá jamais rival no estilo e no conteúdo. João de Melo mostra a humanidade possível no meio da desumanidade que é a guerra, a ignorância, a pobreza e o racismo.
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Sobre o avalancar de uma vida dissociada da matriz religiosa, e a noção de que os filhos dessa decisão vivem processos experimentais que importa atentar e corrigir onde necessário

Load Up The Hay Wagon - Benjamin Wu (2018)


O afastamento de práticas religiosas liberta o homem dos esquemas ideológicos e comportamentais com que estas procuram domar e serenar a vida humana. As vantagens dessa liberdade são de vária ordem: menor compromisso com rotinas consumidoras de tempo (oração, missas, catequese, festas santas); dispensa de contacto com mitologia/alegoria antiquada e/ou contranatura (santos, milagres, profecias); valorização da vida contemporânea com a sua complexidade e idiossincrasias; via aberta para personalizar um quadro moral e de conduta alternativo àquele doutrinado.

Porém, essa liberdade não comporta apenas vantagens. A falta de uma religião acarreta responsabilização individual total pela educação/conduta moral. O suprimir determinados mecanismos que obrigam à reflexão, à misericórdia, ao perdão, à fé, à comunhão coletiva, deixa um vazio que pode não ser sustentável para a concórdia, harmonia ou felicidade interior. Não me espantaria que o boom de livros e programas de autoajuda se deva em significativa medida ao vácuo criado pela dissolução da via religiosa na sociedade. O mesmo quiçá para tanto acompanhamento psicológico regular e para o sucesso dos serviços de coaching. Quem acode às preces dos que não têm Deus?

Tenho estado especialmente vigilante e pensativo no que a supressão de religião pode implicar para os filhos de pais que tenham assumido essa rutura. Se os pais preservam em si a noção do dentro e do fora, permitindo-se estabelecer comparações entre o caminho passado acompanhado da religião e o caminho presente desacompanhado, de cidadão livre e plenamente responsável pela sua conduta, o mesmo não se pode dizer dos filhos que desses casais advenham. Estes nascem já totalmente fora do circuito religioso, e crescerão apenas com o padrão do cidadão livre e plenamente responsável pela sua conduta. Faltar-lhes-á alguma coisa nessa experiência não acolitada por doutrinas evangelizadoras? Julgo que a dúvida deve manter-se viva para que os pais dessas crianças possam não esquecer que estão a presidir a uma experiência social (possivelmente sem precedentes) ao desvincular os filhos da matriz em que foram eles próprios criados e da qual se dissociaram mais tarde. Não creio que haja alguma coisa a temer só por si, julgo é que deve ser mantida consciente essa responsabilidade de deter na íntegra a construção do padrão moral alternativo dessas crianças. É por ora um estado ainda experimental da sociedadeque naturalmente requer acompanhamento e expedita correção de bugs.

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Sobre a temporização da criação e comunicação de uma ideia, o teste prévio de pressupostos, e o encontrar um contexto externo certo para o seu lançamento

Internal Shape 09 - Harumi Nakashima (2019)


Uma ideia acesa numa cabeça é uma lâmpada apagada para o mundo, exceto naturalmente para os poucos que sabem ou suspeitam da sua existência. Uma lâmpada acesa no exterior de uma casa é uma constatação se for vista à noite pelos que estão em seu redor ou pelos passantes, mas é uma camuflada evidência durante um dia. luminoso. Também as ideias na cabeça se mostram melhor na noite dos eventos, quanto não há luz, esperança ou tempo a perder.

Fazer uma ideia transpor a barreira da interioridade cerebral para o mundo exterior é um momento de coragem, como que um trabalho de parto. E é muito arriscado fazer evoluir uma ideia nessa interioridade - fazer-lhe a gestação - e nunca a por a teste ou melhoria pelo confronto ou experimentação com a realidade. As ideias podem assumir a configuração de protótipos, de concretizações testáveis ainda sob vislumbre parcial da sua magnitude ou potencial plenos, e com isso determinados pressupostos que lhe são subjacentes podem confirmar a sua validade enquanto hipóteses ou argumentos de plausibilidade.

A pressa é inimiga da perfeição, e no que toca a ideias, boas ou más, há um tempo para estas amadurecerem. A colheita de uma ideia, tal como um fruto, deve esperar pela maturação certa - processo interior e evolutivo - mas também pelo contexto exterior adequado, pois de nada vale trabalhar a perfeição apenas pela vertente egocêntrica, e esquecer que aquilo que Miguel Torga terá escrito um dia, que as virtudes terapêuticas da fonte estão bem na certeza de sede de quem a procura.

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Sobre o livro 'A Costa dos Murmúrios' (Lídia Jorge), e uma pungente memória ficcional da Guerra Colonial Portuguesa centrada nas mulheres dos oficiais que nela combateram


Hiatus - Laura J. Padgett (2019)

 O livro A Costa dos Murmúrios é um importante contributo de ficção autorado pela escritora Lídia Jorge sobre a memória Guerra Colonial Portuguesa. Escrito numa toada onírica, de quem recorda já sobre fortes camadas de recalmento e retoque, o leitor é convidado a entender e reentender a trama como produto de clarificações e acrescentos ao longo das páginas, e do confronto entre a honestidade factual e o truncamento narrativo para autodefesa ou autoexplicação. Lídia Jorge escreve sobre alguém que reescreve retrospectivamente uma história pessoal, e com isso desvenda o tumulto, ansiedade e desgosto do tempo da ação, contraposto à tranquilidade do desprendimento emocional e consolidação explicativa permitidos pela distância temporal aos eventos narrados.

A história orbita na personagem de Evita, que é mulher de um alferes. A história dicotomiza fortemente a visão do homem militar que sonha com heroísmos medalháveis em cenário e tempos de guerra; e o lado das esposas destes, enquanto figuras reprimidas e remetidas ao papel machista de mães, esposas, donas de casa ociosas, com um querer próprio e liberdade tíbios, e onde o único horizonte existencial é sonhar com o fim da guerra e/ou, pecaminosamente, com o fim dos companheiros a quem não mais reconhecem chama amorosa e empatia. Relações interpessoais desfiguradas, valores pessoais amolgados e relativizados.

A ação decorre em Cabo Delgado, Moçambique, e a beleza natural que é amplamente narrada revela-se um bâlsamo insuficiente para subverter a escuridão da revolta interior de se estar contrariado num território e numa guerra que não se deseja; de se defender e comportar sob entendimentos supremacistas impeditivos da paz e da concórdia; e do desvirtuamento dos valores e da identidade em militares engolidos pela experiência de guerra.

Lídia Jorge é sublime no mostrar que mais do que uma vitória ou derrota territorial, a Guerra Colonial fez perder vidas, e fez danificar vidas aos seus sobreviventes. Esse impacto indelével condicionou a felicidade e o destino de muitos militares e de muitas famílias de militares portugueses. O livro não explora a contrapartida do lado africano, mas adivinha-se, em espelho e por empatia humanista, idênticos dramas e prejuízos nos combatentes contrários.

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Efígies de substância (2024.4): num mundo cada vez mais intrincado, os papeis clássicos do bem e do mal estão ameaçados pela classe do moralmente ambíguo

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Efígies de substância visa estimular o pensamento e reflexão pela força do génio de cartoonistas capazes de surpreender e deliciar com as suas criações.

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Sobre o livro 'A Queda de um Anjo' (Camilo Castelo Branco), e a tragédia resultante de arrumarmos o mundo exterior em datadas prateleiras mentais

Revelation - Jim Rennert (2022)


Demorei um pouco a plasmar em palavras a impressão que me deixou o livro "A Queda de um Anjo", do incontornável Camilo Castelo Branco. Esta leitura aguardava oportunidade para ser feita, e o que a antecipava muito apelativa era a ideia (confirmada) da história ser original: um fidalgo do interior é desterrado para a capital para exercer o seu cargo de deputado e cai em desgraça devido aos vícios ali encontrados.

A história é essa, mas não com os contornos que lhe imaginara, pelo menos no que se entende por vícios. Calisto Elói - o personagem principal - é sobretudo um homem regido por relações geneológicas, daqueles que estuda e apregoa a pureza do seu sangue e que fiscaliza a (im)pureza da linhagem dos outros, usando-a como critério de aceitação das pessoas que o entornam. Esta é, de resto, a força diretriz dos factos narrados na história, não só porque explica um casamento precoce e por conveniência de Calisto com uma prima local que nunca amou; como também porque preside à decisão de se amantizar na capital por uma vistosa senhora vinda do Brasil de quem ao início se descobre ser parente de boa linhagem, e da qual mais tarde se faz novo marido. 

Como o culto ao bom nome genealógico é um exercício que coloca ênfase total no passado, Calisto  Elói revela no parlamento uma oratória que surpreende pelas referências e imagens anciãs que cita, pelo estilo com que articula e argumenta; e pelas ideias conservadoras e ultra tradicionalistas com que mede e calibra as discussões parlamentares e os perfis oratórios dos colegas no hemiciclo.

Tudo isto acaba por ruir com estrondo, e ainda bem, porque a expansão da cosmovisão e o viver no presente nunca fizeram mal a ninguém e são uma estrada sem retorno. A haver queda (do anjo) essa é a que resulta da tomada de consciência de que o mundo é sempre mais plural do que somos capazes de antever, sobretudo quando cultivamos redomas de segurança que ingenuamente o catalogam em datadas prateleiras mentais.

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Sobre o filme 'Nunca Desistas', e uma boa história de empoderamento de mulheres, professores e pais no sentido do bem comum e de igualdade sociais em matéria de educação

Há filmes muito bons que estranhamente poucos viram e dos quais muito pouco se fala. É esse o caso do filme Nunca Desistas (direção de Daniel Barnz, argumento de Daniel Barnz e Brin Hill), uma história inspirada em factos reais, que versa sobre a recuperação de uma escola pública decadente por parte de uma professora sonhadora (por Viola Davis) e de uma mãe desesperada (por Maggie Gyllenhaal). O filme tem um quê de kafkiano, pois a boa intenção das duas  líderes da história esbarra na obscura posição política do sindicato dos professores, e nas perdas de tempo que a burocracia governamental impõe a quem ousa promover alterações ágeis e coadunáveis com períodos letivos.

Numa época em que se fala tanto de empoderamento eis aqui um bom filme de concretização dessa filosofia, centrado na iniciativa de duas mulheres, centrado em princípios de cidadania ativa, e apelando a que os professores e encarregados de educação não desistam do lutar pela escola que sonham para seus alunos e educandos, respetivamente. Poucos exemplos mais nobres podem ser invocados do que o trabalhar para o bem comum e do que o trabalhar para inverter as igualdades sociais. 

Por tudo isto e também pela sua capacidade de entreter, o filme Nunca Desistas foi uma excelente surpresa. Muito estranho a sua falta de repercussão, reconhecimento e divulgação, mas aqui fica o meu testemunho e contributo para inverter tal injustiça. 
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Sobre o caminho dos 'a priori', e o desafio de clarividência para resolver problemas por antecipação, sem confronto e em salvaguarda da harmonia social

Coexistencia I - Mario Núñez (2015)


Uma parte natural da tensão sentida quando se assumem papeis de liderança de um agregado social prende-se com o assegurar o cumprimento do padrão comportamental e de valores que se ambiciona ver implementado nesse ecossistema. Esta tensão existe desde logo na esfera familiar pela tentação possessiva inerente à consanguinidade; mas irrompe também em cenários coletivos como um condomínio, um bairro, uma escola. uma freguesia, uma equipa, e/ou um grupo de trabalho.

Claro está que há menos margem para intervir em domínios extrafamiliares, mas mesmo em domínios familiares há idades e etapas de mais fácil consenso e outras de mais aguerrido confronto das regras ou de menos pacífica reinvindicação. O indivíduo é deixado assim numa encruzilhada de desafios, em que equilibrar posições e manter a coerência são objetivos asseguráveis apenas sob considerável esforço e capacidade de encaixe.

Por outro lado, as coisas são verdade quer as vejamos quer não, mas a contrariedade suscitada por coisas imperfeitas dói-nos em relação direta com a consciência e atenção que lhes prestamos. Um paliativo para o ímpeto de confrontação contra as brechas no cumprimento do padrão comportamental e de valores é o afastamento, mas com esse pode vir a alienação, a desumanização, e o alheamento de situações que a prazo evoluem para problemas maiores e ingeríveis. Outro, menos óbvio, é o trabalhar sob os a priori do tema alvo de quezília, de modo a propiciar ajustes a montante do problema, conducentes a que este seja resolvido (ou muito mitigado)  pela via de o fazer evitar surgir.

Um exemplo prático que me ocorre é o da acumulação de lixo fora dos contentores na via pública. Ao invés de se entrar em rota de colisão com todos os que se dirigem ao contentor cheio e ainda assim depositam fora deste o seu lixo, é possível solicitar que dois contentores possam ser colocados naquele ponto que um parece estar a ser insuficiente para o efeito; ou pedir que a recolha naquele ponto seja intensificada. Estas formas de atuar eclipsam os danos relacionais sempre que se segue pela via de confrontar outros seres humanos. Preserva-se um bem maior que é a harmonia, sem prejuízo de aplacar problemas importantes.

O que nem sempre há, e aí mea culpa para o género humano e seus castrantes processos formativos, é clarividência para atuar de uma forma mais holística e preventiva nos sistema humanos. E é aqui, a montante de todo o qualquer problema, e de todo e qualquer agregado social, que há trabalho estrutural a fazer para pavimentar o caminho que resolve problemas evitando o confronto e, com isso, em salvaguarda da harmonia.

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Sobre o livro 'O Deus das Pequenas Coisas' (Arundhati Roy), e uma história de amor trágica que intersecta variados pontos sensíveis daquilo que se entende como "a" Índia

Curtain: Mojilal Manilal - Bhupen Khakhar (1992)


O livro O Deus das Pequenas Coisas, da escritora indiana Arundhati Roy, compreende uma trama de base simples mas riquíssima e criativa nos paralelos e contrastes que a adornam. Sem revelar demasiado, o livro conta uma história de amor entre duas pessoas de castas diferentes, e o desmoronar de uma família já de si disfuncional devido à convulsão criada pela consumação de um vínculo afetivo tido como proibido pela sociedade e famílias.

O que é diferenciado e valioso nesta história em particular, sobretudo para um leitor ocidental, é que toda a ação se passa no estado indiano de Kerala e abarca de forma mais do que generosa o caleidoscópio cultural, étnico, ideológico de que a Índia é feita. Basta ver que Roy congrega e confronta na história cristão sírios e hindus; o patronato e o operariado industrial; os movimentos político pró-marxistas (naxalitas); o legado britânico e formas de lidar com ele (valorizando-o ou desprezando-o); o racismo pela cor da pele entre concidadãos indianos; o sexismo masculino e a tolerância para com o assédio sexual na Índia. A lista poderia continuar com bastantes mais exemplos.

Para quem tenha curiosidade pela Índia e seu funcionamento O Deus das Pequenas Coisas é um inesperado manual de cariz ficcional, que vai desvendando uma história trágica de amor página após página, complementando-a progressivamente com elementos de contexto que servem diretamente como especiarias para o enredo (e qualidade do livro); e indiretamente como denúncia e crítica social. Sendo Roy arquiteta de formação, estamos perante uma obra de autor, de tremenda traça estética, e plena de intencionalidade nos pormenores.

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