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Sobre o livro 'Autópsia de um Mar de Ruínas' (João de Melo) e uma magistral, empática, e traumatizante explicitude literária sobre a guerra colonial portuguesa em Angola
Sobre o avalancar de uma vida dissociada da matriz religiosa, e a noção de que os filhos dessa decisão vivem processos experimentais que importa atentar e corrigir onde necessário
Sobre a temporização da criação e comunicação de uma ideia, o teste prévio de pressupostos, e o encontrar um contexto externo certo para o seu lançamento
Internal Shape 09 - Harumi Nakashima (2019)
Uma ideia acesa numa cabeça é uma lâmpada apagada para o mundo, exceto naturalmente para os poucos que sabem ou suspeitam da sua existência. Uma lâmpada acesa no exterior de uma casa é uma constatação se for vista à noite pelos que estão em seu redor ou pelos passantes, mas é uma camuflada evidência durante um dia. luminoso. Também as ideias na cabeça se mostram melhor na noite dos eventos, quanto não há luz, esperança ou tempo a perder.
Fazer uma ideia transpor a barreira da interioridade cerebral para o mundo exterior é um momento de coragem, como que um trabalho de parto. E é muito arriscado fazer evoluir uma ideia nessa interioridade - fazer-lhe a gestação - e nunca a por a teste ou melhoria pelo confronto ou experimentação com a realidade. As ideias podem assumir a configuração de protótipos, de concretizações testáveis ainda sob vislumbre parcial da sua magnitude ou potencial plenos, e com isso determinados pressupostos que lhe são subjacentes podem confirmar a sua validade enquanto hipóteses ou argumentos de plausibilidade.
A pressa é inimiga da perfeição, e no que toca a ideias, boas ou más, há um tempo para estas amadurecerem. A colheita de uma ideia, tal como um fruto, deve esperar pela maturação certa - processo interior e evolutivo - mas também pelo contexto exterior adequado, pois de nada vale trabalhar a perfeição apenas pela vertente egocêntrica, e esquecer que aquilo que Miguel Torga terá escrito um dia, que as virtudes terapêuticas da fonte estão bem na certeza de sede de quem a procura.
Sobre o livro 'A Costa dos Murmúrios' (Lídia Jorge), e uma pungente memória ficcional da Guerra Colonial Portuguesa centrada nas mulheres dos oficiais que nela combateram
O livro A Costa dos Murmúrios é um importante contributo de ficção autorado pela escritora Lídia Jorge sobre a memória Guerra Colonial Portuguesa. Escrito numa toada onírica, de quem recorda já sobre fortes camadas de recalmento e retoque, o leitor é convidado a entender e reentender a trama como produto de clarificações e acrescentos ao longo das páginas, e do confronto entre a honestidade factual e o truncamento narrativo para autodefesa ou autoexplicação. Lídia Jorge escreve sobre alguém que reescreve retrospectivamente uma história pessoal, e com isso desvenda o tumulto, ansiedade e desgosto do tempo da ação, contraposto à tranquilidade do desprendimento emocional e consolidação explicativa permitidos pela distância temporal aos eventos narrados.
A história orbita na personagem de Evita, que é mulher de um alferes. A história dicotomiza fortemente a visão do homem militar que sonha com heroísmos medalháveis em cenário e tempos de guerra; e o lado das esposas destes, enquanto figuras reprimidas e remetidas ao papel machista de mães, esposas, donas de casa ociosas, com um querer próprio e liberdade tíbios, e onde o único horizonte existencial é sonhar com o fim da guerra e/ou, pecaminosamente, com o fim dos companheiros a quem não mais reconhecem chama amorosa e empatia. Relações interpessoais desfiguradas, valores pessoais amolgados e relativizados.
A ação decorre em Cabo Delgado, Moçambique, e a beleza natural que é amplamente narrada revela-se um bâlsamo insuficiente para subverter a escuridão da revolta interior de se estar contrariado num território e numa guerra que não se deseja; de se defender e comportar sob entendimentos supremacistas impeditivos da paz e da concórdia; e do desvirtuamento dos valores e da identidade em militares engolidos pela experiência de guerra.
Lídia Jorge é sublime no mostrar que mais do que uma vitória ou derrota territorial, a Guerra Colonial fez perder vidas, e fez danificar vidas aos seus sobreviventes. Esse impacto indelével condicionou a felicidade e o destino de muitos militares e de muitas famílias de militares portugueses. O livro não explora a contrapartida do lado africano, mas adivinha-se, em espelho e por empatia humanista, idênticos dramas e prejuízos nos combatentes contrários.
Efígies de substância (2024.4): num mundo cada vez mais intrincado, os papeis clássicos do bem e do mal estão ameaçados pela classe do moralmente ambíguo
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Efígies de substância visa estimular o pensamento e reflexão pela força do génio de cartoonistas capazes de surpreender e deliciar com as suas criações.
Sobre o livro 'A Queda de um Anjo' (Camilo Castelo Branco), e a tragédia resultante de arrumarmos o mundo exterior em datadas prateleiras mentais
Demorei um pouco a plasmar em palavras a impressão que me deixou o livro "A Queda de um Anjo", do incontornável Camilo Castelo Branco. Esta leitura aguardava oportunidade para ser feita, e o que a antecipava muito apelativa era a ideia (confirmada) da história ser original: um fidalgo do interior é desterrado para a capital para exercer o seu cargo de deputado e cai em desgraça devido aos vícios ali encontrados.
A história é essa, mas não com os contornos que lhe imaginara, pelo menos no que se entende por vícios. Calisto Elói - o personagem principal - é sobretudo um homem regido por relações geneológicas, daqueles que estuda e apregoa a pureza do seu sangue e que fiscaliza a (im)pureza da linhagem dos outros, usando-a como critério de aceitação das pessoas que o entornam. Esta é, de resto, a força diretriz dos factos narrados na história, não só porque explica um casamento precoce e por conveniência de Calisto com uma prima local que nunca amou; como também porque preside à decisão de se amantizar na capital por uma vistosa senhora vinda do Brasil de quem ao início se descobre ser parente de boa linhagem, e da qual mais tarde se faz novo marido.
Como o culto ao bom nome genealógico é um exercício que coloca ênfase total no passado, Calisto Elói revela no parlamento uma oratória que surpreende pelas referências e imagens anciãs que cita, pelo estilo com que articula e argumenta; e pelas ideias conservadoras e ultra tradicionalistas com que mede e calibra as discussões parlamentares e os perfis oratórios dos colegas no hemiciclo.
Tudo isto acaba por ruir com estrondo, e ainda bem, porque a expansão da cosmovisão e o viver no presente nunca fizeram mal a ninguém e são uma estrada sem retorno. A haver queda (do anjo) essa é a que resulta da tomada de consciência de que o mundo é sempre mais plural do que somos capazes de antever, sobretudo quando cultivamos redomas de segurança que ingenuamente o catalogam em datadas prateleiras mentais.
Sobre o filme 'Nunca Desistas', e uma boa história de empoderamento de mulheres, professores e pais no sentido do bem comum e de igualdade sociais em matéria de educação
Sobre o caminho dos 'a priori', e o desafio de clarividência para resolver problemas por antecipação, sem confronto e em salvaguarda da harmonia social
Coexistencia I - Mario Núñez (2015)
Uma parte natural da tensão sentida quando se assumem papeis de liderança de um agregado social prende-se com o assegurar o cumprimento do padrão comportamental e de valores que se ambiciona ver implementado nesse ecossistema. Esta tensão existe desde logo na esfera familiar pela tentação possessiva inerente à consanguinidade; mas irrompe também em cenários coletivos como um condomínio, um bairro, uma escola. uma freguesia, uma equipa, e/ou um grupo de trabalho.
Claro está que há menos margem para intervir em domínios extrafamiliares, mas mesmo em domínios familiares há idades e etapas de mais fácil consenso e outras de mais aguerrido confronto das regras ou de menos pacífica reinvindicação. O indivíduo é deixado assim numa encruzilhada de desafios, em que equilibrar posições e manter a coerência são objetivos asseguráveis apenas sob considerável esforço e capacidade de encaixe.
Por outro lado, as coisas são verdade quer as vejamos quer não, mas a contrariedade suscitada por coisas imperfeitas dói-nos em relação direta com a consciência e atenção que lhes prestamos. Um paliativo para o ímpeto de confrontação contra as brechas no cumprimento do padrão comportamental e de valores é o afastamento, mas com esse pode vir a alienação, a desumanização, e o alheamento de situações que a prazo evoluem para problemas maiores e ingeríveis. Outro, menos óbvio, é o trabalhar sob os a priori do tema alvo de quezília, de modo a propiciar ajustes a montante do problema, conducentes a que este seja resolvido (ou muito mitigado) pela via de o fazer evitar surgir.
Um exemplo prático que me ocorre é o da acumulação de lixo fora dos contentores na via pública. Ao invés de se entrar em rota de colisão com todos os que se dirigem ao contentor cheio e ainda assim depositam fora deste o seu lixo, é possível solicitar que dois contentores possam ser colocados naquele ponto que um parece estar a ser insuficiente para o efeito; ou pedir que a recolha naquele ponto seja intensificada. Estas formas de atuar eclipsam os danos relacionais sempre que se segue pela via de confrontar outros seres humanos. Preserva-se um bem maior que é a harmonia, sem prejuízo de aplacar problemas importantes.
O que nem sempre há, e aí mea culpa para o género humano e seus castrantes processos formativos, é clarividência para atuar de uma forma mais holística e preventiva nos sistema humanos. E é aqui, a montante de todo o qualquer problema, e de todo e qualquer agregado social, que há trabalho estrutural a fazer para pavimentar o caminho que resolve problemas evitando o confronto e, com isso, em salvaguarda da harmonia.
Sobre o livro 'O Deus das Pequenas Coisas' (Arundhati Roy), e uma história de amor trágica que intersecta variados pontos sensíveis daquilo que se entende como "a" Índia
Curtain: Mojilal Manilal - Bhupen Khakhar (1992)
O livro O Deus das Pequenas Coisas, da escritora indiana Arundhati Roy, compreende uma trama de base simples mas riquíssima e criativa nos paralelos e contrastes que a adornam. Sem revelar demasiado, o livro conta uma história de amor entre duas pessoas de castas diferentes, e o desmoronar de uma família já de si disfuncional devido à convulsão criada pela consumação de um vínculo afetivo tido como proibido pela sociedade e famílias.
O que é diferenciado e valioso nesta história em particular, sobretudo para um leitor ocidental, é que toda a ação se passa no estado indiano de Kerala e abarca de forma mais do que generosa o caleidoscópio cultural, étnico, ideológico de que a Índia é feita. Basta ver que Roy congrega e confronta na história cristão sírios e hindus; o patronato e o operariado industrial; os movimentos político pró-marxistas (naxalitas); o legado britânico e formas de lidar com ele (valorizando-o ou desprezando-o); o racismo pela cor da pele entre concidadãos indianos; o sexismo masculino e a tolerância para com o assédio sexual na Índia. A lista poderia continuar com bastantes mais exemplos.
Para quem tenha curiosidade pela Índia e seu funcionamento O Deus das Pequenas Coisas é um inesperado manual de cariz ficcional, que vai desvendando uma história trágica de amor página após página, complementando-a progressivamente com elementos de contexto que servem diretamente como especiarias para o enredo (e qualidade do livro); e indiretamente como denúncia e crítica social. Sendo Roy arquiteta de formação, estamos perante uma obra de autor, de tremenda traça estética, e plena de intencionalidade nos pormenores.