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Sobre o porquê de discutir hábitos de leitura quando literatura é arte, e o busílis da questão que é a qualidade das leituras que se escolhem e privilegiam

Reader (big fan) - Anna Wehrwein (2024)

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A leitura está presente no dia a dia de formas tão ubíquas que se torna invisível. As tecnologias de informação dependem da leitura enormemente, mas reconfiguraram a leitura para um plano telegráfico, e obedecendo à lógica de janelas de atenção muito curtas. Se repararmos com cuidado, também as peças jornalísticas televisivas e de publicidade intercalam frações de vídeo muito curtas (de alguns segundos) para assegurar dinamismo e cativação da atenção do espetador. Ninguém parece desmerecer esses meios por assim procederem. Também as tecnologias de informação fizeram isso ao texto e à experiência da leitura. Esta é altamente requerida por aquelas mas em microdoses, idêntico porventura a quem faz leitura intensiva e recorrente de títulos dos jornais e com isso se afirma informado e capaz de ler.

O tema dos hábitos de leitura ergue-se quase sempre sob o prisma da leitura de livros, e invariavelmente de livros de ficção. Estes hábitos, porém, não são esgotam nos livros nem na ficção, mas sobre isso pouco ou nada se diz. Se, como uma certa vox populi leitora afirma, o que interessa é ler, então elogiemos despudoramente o modo como as tecnologias de informação colocam as pessoas a ler todos os dias e a toda a hora, em enorme volume e rapidez, apesar de ser em microdoses e sob parca riqueza lexical e discursiva. Se isto não soa a satisfatório, então é porque o que importa não é só a ação de ler: o que importa é o produto cruzado da qualidade e quantidade do que se lê.

Os livros são um concentrado intencional de texto que permite um ato de leitura mais demorado, formulado para destilar determinado objetivo reflexivo e/ou emocional. E como concentrados que são, o seu consumo por via da leitura consegue produzir efeitos que nenhuma leitura diluída ou espartilhada o conseguirá. A arte de sequenciar por escrito palavras e ideias e com isso soprar o imaginário do leitor com um ideário e uma experienciação autoinduzida é um campo criativo onde só os excepcionais conseguem figurar para a eternidade. É um campo onde os não excecionais conseguem também sobreviver, mas com finitude anunciada, escudados em leitores que lhes compreendam a proposta de entretenimento e a funcionalidade prática da leitura do que produzem.

Julgo que nenhuma discussão de hábitos de leitura pode silenciar que se a literatura de ficção é uma arte, então os hábitos de leitura, se bem aplicados, confluem para a evolução do ser humano, para o seu refinamento de sensibilidades, para o apuramento dos cânones estéticos e existenciais. Não confundamos isto com preferências pessoais ou clubísticas de leitura, de géneros e/ou de autores. Uma essência é uma essência. A literatura não tem de ser anárquica e acéfala a troco de colocar os ditos hábitos de leitura num pedestal inquestionável de bem maior a preservar. 

Por isso concluo: mais vale não ler determinadas coisas do que as ler. Mais vale valorizar o que é bom do que (des)valorizar tudo, admitindo qualquer escrito de ficção à mesa como meritório. Mais vale perder tempo a discutir o que é isso do bom, do que perder tempo a assinalar que cada um é que sabe da sua vida e outras asserções castrantes do apuramento da excelência. O fim último das coisas não pode ser autopreservar-se a qualquer o custo. 

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Caminhadas pela vizinhança (2025.2): quem lê um livro lê-o por gosto (?); e a construção de capelinhas um pouco por todo o lado

 Cadet Chapel - Daniel Ashe (2019)

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"A leitura tornou-se num jogo e é dos competitivos. A sua gamificação é real e espera-se que se intensifique, porque convoca constantemente novos leitores, que aparentemente têm mais satisfação em superar os seus próprios números do que em ler um livro sem pressas ou pressões, apenas pelo prazer da leitura, que se quer bem demorado."


"Eu acho que as pessoas, até por aquilo que se chama a falência das grandes narrativas, existe uma espécie de carência de sentido e essa carência de sentido que as pessoas encontram nas suas vidas, como já não as encontram nas igrejas, muitas vezes vão construir capelas em muitos lados. E o jornalismo é um terreno muito dado à construção de capelinhas e isso é um problema. Então, ao invés de termos o jornalista temos o pregador."
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Caminhadas pela vizinhança (2025.1): o capitalismo é capaz de produzir os maiores atos de solidariedade; e a sorte de encontrar cedo uma coisa que interessa fazer

 

Black Horizontal Pyramids - Alexander Calder (1975)

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"In his January 2003 State of the Union address, President George W. Bush made an announcement: The United States would undertake a massive investment to combat HIV/AIDS around the world. Those working in the field remember watching the speech and wondering if this could be a much-needed turning point. (...) It's the largest health commitment ever made by any country, now totaling more than $100 billion in more than 50 countries. (...) Bush returned to Washington on [2013] to extol PEPFAR's progress and to urge continued support when Congress takes up reauthorization of the program this year. "I don't really come to Washington often," he said. "But I'm here to remind people that American taxpayers' money is making a huge difference, a measurable difference in saving lives: 25 million people." (...) Ambassador John Nkengasong, the U.S. global AIDS coordinator and special representative for global health diplomacy, (...) said, "PEPFAR is, in my view, the greatest act of solidarity that humanity has ever created in solving an infectious disease challenge like HIV/AIDS."

"Sim às vezes saem [perfeitas à primeira tentativa] mas a maior parte das vezes não saem, a primeira versão não é boa, não é, tem que se sofrer, para que o leitor possa ter prazer tem que se sofrer, mas vale a pena porque senão a vida não faz sentido. E tive a sorte de encontrar uma coisa que desde os cinco, seis, oito anos era a única coisa que me interessava fazer. (...) isto é um trabalho de teimosia, paciência".
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Sobre o livro 'Auto dos Danados' (António Lobo Antunes), e uma brilhante sangria de imoralidades e fealdade no Alentejo senhorial do período revolucionário dos anos 70

Washing off the ugly - Walker Antonio (2024)

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O livro Auto dos Danados é um romance de António Lobo Antunes publicado em 1985. O tempo e o espaço são, respetivamente, o período revolucionário português dos anos 70, e o Alentejo tradicional desse tempo materializado em Reguengos de Monsaraz, na sua disposição face ao rio guadiana e de proximidade fronteiriça com território espanhol.

A ação é contada a múltiplas vozes, cada qual membro de uma mesma família latifundiária às portas do falecimento do grande patriarca por altura da festa da terra, e o roubo da herança é o grande motor da história. Pelo meio vão-se conhecendo as muitas imoralidades e contingências sociais desta família problemática ainda assim altamente privilegiada e por isso artificialmente sustentada.

Ressalta desta obra uma caracterização dura e desconcertante do abuso de poder que o estatuto social conferia no Alentejo profundo àqueles bafejados por terras e posição social, e plasmado por Lobo Antunes na forma de traições, machismo, argumentos de autoridade, uso justiceiro de arma, ocultação pública de escândalos, adiamentos de falência económica iminente.

Muito mais teria de ser dito para ousar esgotar os méritos de Auto dos Danados, mas concluiria sublinhando que é um livro áspero porque está repleto de fealdade, obstaculizando do leitor o processo empático que sempre se estabelece para que este se apaixone intensamente pela história que lê. Neste sentido é um livro para leitores adultos, e é nessa condição que deve ser apreciado, mostrando-se aí brilhante e ímpar na conjugação da forma e conteúdo.

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Sobre o apaziguamento de conflitos geracionais pela redução dos mais velhos à condição de crianças/bebés nascidos 'faz tempo'

Donatello Riff Madonna - Ann Agee (2023)


No calor dos momentos mais conflituosos é difícil ser-se magnânimo. A frio, porém, temos a oportunidade de nos redimirmos pelo de recentrar os problemas, deixando-os destilar a essência das suas causas. Uma fonte importante mas não exclusiva dos problemas entre humanos deve-se ao conflito de gerações, o qual contempla toda a diversidade decorrente de mudanças conjunturais e/ou culturais que fazem pessoas de tempos diferentes entenderem e comportarem-se de formas desiguais. O entendimento entre gerações bebe dos mesmos requisitos e esforço encontrado em desentendimentos de naturezas díspares, como são as de religião, as de nacionalidade, as de preferência política, ou as de patamar socioeconómico.

A redução a um terreno comum é sempre imprescindível para apaziguar humanos dissidentes entre si, e essa redução pode, num plano bondoso e ingénuo (no bom sentido), passar por entender que todas as pessoas foram um dia bebés e crianças, e que os mais velhos (pense-se em ditadores ou em pessoas muito conservadoras) são crianças nascidas faz tempo.

Vêm estes ideias de duas músicas de autores brasileiros que me acompanham e que, juntas, consubstanciam uma proposta para relativizar os danos causados por pessoas mais velhas. Imaginando-as em criança,  infantilizadas, talvez amaciemos a compreensão de que são seres em busca do seu lugar ao sol num mundo que não está bem explicado logo à nascença. Falsas partidas, passos em falso, autoproteção, birras, ciúmes, obsessões. Tudo fica relativizado se pensado no prisma de uma inocente crianças. Não resolve os assuntos, mas apazigua o vulcão emocional que conflitos geracionais podem suscitar. 


 Saiba: todo mundo foi neném
Einstein, Freud e Platão também
Hitler, Bush e Saddam Hussein
Quem tem grana e quem não tem
Saiba: todo mundo teve infância
Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda, Galileu
e também você e eu

Saiba - Adriana Calcanhoto (2004)


Velhinhos são crianças nascidas faz tempo!

Eu Não Sei Na Verdade Quem Eu Sou - O Teatro Mágico (2016)



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Sobre o livro 'Autópsia de um Mar de Ruínas' (João de Melo) e uma magistral, empática, e traumatizante explicitude literária sobre a guerra colonial portuguesa em Angola

The Last Soldier - Mehdi Ghadyanloo (2020)


O livro 'Autópsia de um Mar de Ruínas', da autoria de João de Melo, publicado originalmente em 1984, é uma magistral obra de ficção tangível de realismo centrada no tema da Guerra Colonial Portuguesa. A ação passa-se no norte de Angola e a personagem principal é um furriel enfermeiro que em muito personifica o próprio escritor na sua experiência em primeira pessoa da Guerra Colonial Portuguesa em território angolano. Este furriel encontra-se a braços com um conflito bélico de que é alheio, e vê-se em permanente dissenção ética com a visão de que o povo local - os nativos - são inimigos sem qualquer exceção, e merecem ser injustiçados, mal tratados e aniquilados impiedosamente.

Faço esta leitura após ter lido 'A Costa dos Murmúrios', mas encontrei neste livro uma perfeição superior ao que já era um nível extremamente apurado do livro de Lídia Jorge. Aqui, João de Melo não só retrata a guerra pelo seu interior, com retratos vívidos e pormenores terríficos do caos e fealdade dos combates; como também recria os dois lados da barricada, sequenciando os capítulos com narração alternada entre o contexto e psicologia do invasor, e o contexto e psicologia do invadido. Esta mescla é evidenciada não só pela linguagem adotada como também pela estrutura de pensamento de duas culturas no entendimento diverso de uma realidade a que estão unidas. Há uma abundância, dureza, e explicitude de episódios pelo livro, tanto de ambiente militar em cenário e manobras de combate, como  de socorro médico a feridos e mortos em combate, como também ainda de injustiças (sexuais, por exemplo) da subjugação das comunidades locais ao jugo branco. Esta diversidade apimenta a narração a ponto de a fazer transpor o já de si importante plano da memória descritiva ficcionada, para cristalizar denúncias indeléveis para a posteridade (apenas veladas pelo plano ficcional da obra) sobre o que fomos capazes de fazer a outros seres humanos há muito poucas décadas atrás.

Com o passar dos anos, deixar-se-á de escrever mais e mais sobre a Guerra Colonial Portuguesa, mormente a partir de vivências de causa própria, e por isso me parece que este glorioso livro não terá jamais rival no estilo e no conteúdo. João de Melo mostra a humanidade possível no meio da desumanidade que é a guerra, a ignorância, a pobreza e o racismo.
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Sobre o alavancar de uma vida dissociada da matriz religiosa, e a noção de que os filhos dessa decisão vivem processos experimentais que importa atentar e corrigir onde necessário

Load Up The Hay Wagon - Benjamin Wu (2018)


O afastamento de práticas religiosas liberta o homem dos esquemas ideológicos e comportamentais com que estas procuram domar e serenar a vida humana. As vantagens dessa liberdade são de vária ordem: menor compromisso com rotinas consumidoras de tempo (oração, missas, catequese, festas santas); dispensa de contacto com mitologia/alegoria antiquada e/ou contranatura (santos, milagres, profecias); valorização da vida contemporânea com a sua complexidade e idiossincrasias; via aberta para personalizar um quadro moral e de conduta alternativo àquele doutrinado.

Porém, essa liberdade não comporta apenas vantagens. A falta de uma religião acarreta responsabilização individual total pela educação/conduta moral. O suprimir determinados mecanismos que obrigam à reflexão, à misericórdia, ao perdão, à fé, à comunhão coletiva, deixa um vazio que pode não ser sustentável para a concórdia, harmonia ou felicidade interior. Não me espantaria que o boom de livros e programas de autoajuda se deva em significativa medida ao vácuo criado pela dissolução da via religiosa na sociedade. O mesmo quiçá para tanto acompanhamento psicológico regular e para o sucesso dos serviços de coaching. Quem acode às preces dos que não têm Deus?

Tenho estado especialmente vigilante e pensativo no que a supressão de religião pode implicar para os filhos de pais que tenham assumido essa rutura. Se os pais preservam em si a noção do dentro e do fora, permitindo-se estabelecer comparações entre o caminho passado acompanhado da religião e o caminho presente desacompanhado, de cidadão livre e plenamente responsável pela sua conduta, o mesmo não se pode dizer dos filhos que desses casais advenham. Estes nascem já totalmente fora do circuito religioso, e crescerão apenas com o padrão do cidadão livre e plenamente responsável pela sua conduta. Faltar-lhes-á alguma coisa nessa experiência não acolitada por doutrinas evangelizadoras? Julgo que a dúvida deve manter-se viva para que os pais dessas crianças possam não esquecer que estão a presidir a uma experiência social (possivelmente sem precedentes) ao desvincular os filhos da matriz em que foram eles próprios criados e da qual se dissociaram mais tarde. Não creio que haja alguma coisa a temer só por si, julgo é que deve ser mantida consciente essa responsabilidade de deter na íntegra a construção do padrão moral alternativo dessas crianças. É por ora um estado ainda experimental da sociedadeque naturalmente requer acompanhamento e expedita correção de bugs.

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